3 de abril de 2012

Marx aos 193

John Lanchester

London Review of Books


Ao tentar pensar o que Marx teria feito do mundo de hoje, devemos começar ressaltando que ele não era um empirista. Ele não achava possível obter acesso à verdade ao juntar frações de dados da experiência, “pontos de dados” como chamados pelos cientistas, e então formar um retrato da realidade a partir dos fragmentos acumulados. Dado que é isto o que a maior parte de nós pensa fazer a maior parte do tempo, marca-se um rompimento fundamental entre Marx e o que chamamos senso comum, uma noção detestada por Marx, que a via como a forma de uma ordem política e/ou uma classe específica transformar sua construção da realidade em um conjunto de ideias aparentemente neutro, tomado então como dado da ordem natural. O empirismo, por retirar suas provas da ordem das coisas existentes, está intrinsecamente disposto a aceitar como realidade coisas que são apenas comprovação de vieses subjacentes e pressões ideológicas. O empirismo, para Marx, sempre confirmará o status quo. Ele teria desgostado em particular da tendência moderna de argumentar a partir de “fatos”, como se estes fossem pedaços neutros da realidade, livres das marcas históricas, de viés ideológico e interpretativo e das circunstâncias de sua própria produção.

Por outro lado, eu sou um empirista. Isso não é tanto por achar que Marx estava errado sobre o efeito de distorção das pressões ideológicas subjacentes; é por não achar possível alcançar um ponto privilegiado livre dessas pressões. Logo, tem-se o dever de fazer o melhor com o que é possível ver, especialmente não se furtar a observar dados desagradáveis e/ou contraditórios. Mas essa é uma diferença profunda entre Marx e meu modo de falar sobre Marx, o qual ele teria considerado como filosófica e politicamente inválido por completo.

Considerem estas passagens do Manifesto Comunista, escrito por Marx com Engels em 1848, após ser expulso da França e da Alemanha devido a seus escritos políticos:

O capitalismo submeteu o campo à cidade. Criou grandes centros urbanos. (…) Aglomerou as populações, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos.

O capitalismo rasgou o véu do sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a meras relações monetárias.

O capitalismo foi o primeiro a provar o que a atividade humana pode realizar: criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas; conduziu expedições que empanaram mesmo as antigas invasões e as Cruzadas. (…) O capitalismo (…) criou forças produtivas mais numerosas e mais colossais do que todas as gerações passadas em seu conjunto.

O capitalismo não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. (…) Essa subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época capitalista de todas as precedentes. (…) As velhas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a ser destruídas diariamente.

Ao invés das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, surgem novas demandas, que reclamam para sua satisfação os produtos das regiões mais longínquas e de climas os mais diversos.

Basta mencionar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, ameaçam cada vez mais a existência da sociedade capitalista. Cada crise destrói regularmente não só uma grande massa de produtos fabricados, mas também uma grande parte das próprias forças produtivas já criadas.


É difícil não concluir desta seleção de frases que Marx foi extraordinariamente profético. Ele de fato teve o mais espetacular insight sobre a natureza, a trajetória e a direção do capitalismo. Três aspectos que se destacam em especial aqui são o tributo pago por ele à capacidade produtiva do capitalismo, que excede em muito qualquer outro sistema político-econômico já visto; a reconstrução da ordem social vinda com isso; e a inerente tendência do capitalismo para a crise, para ciclos de expansão e contração.

Entretanto, devo admitir que não citei essas frases exatamente como Marx as escreveu: onde escrevi “capitalismo”, Marx havia escrito “a burguesia”. Ele falava sobre uma classe e o sistema que servia seus interesses, e fiz parecer que falava apenas sobre o sistema. Marx não usa a palavra “capitalismo”. O termo nunca aparece na primeira parte finalizada de Das Kapital. (Conferi fazendo uma busca pela palavra e a encontrei três vezes, todas aparentemente más traduções ou maus usos do plural alemão Kapitals – em alemão ele nunca fala de Kapitalismus.) Dado que ele é ampla e corretamente visto como o maior crítico do capitalismo, trata-se de uma singular omissão. Os termos preferidos por ele foram “economia política” e “economia política burguesa”, vistos como abrangendo tudo, desde direitos de propriedade, nossa ideia contemporânea de direitos humanos, até a própria concepção do indivíduo autônomo e independente. Acho que ele não usava a palavra “capitalismo” porque isso implicaria que o capitalismo seria um dentre inúmeros sistemas concorrentes possíveis – e Marx não acreditava nisso. Ele não pensava ser possível remover o capitalismo sem uma viravolta fundamental da ordem social, política e filosófica existente.

Ele estava certo: nenhuma alternativa se desenvolveu. A Economia como disciplina tornou-se efetivamente o estudo do capitalismo. Os dois são considerados o mesmo assunto. Se um dia houvesse um desafio sério e sustentado teoricamente à hegemonia do capitalismo dentro da Economia – um desafio sério e sustentado subsequente ao oferecido pelos assim chamados “socialismos reais existentes” –, este poderia ter surgido a partir da quase liquefação final do sistema econômico global em 2008. No entanto, tudo que vimos foram sugestões para ajustes do sistema existente para torná-lo menos arriscado. Temos no momento este híbrido monstruoso, o capitalismo de estado – um termo que era o preferido do Partido dos Trabalhadores Socialistas [Socialist Workers Party] para descrever a União Soviética, usado há algumas semanas na capa da The Economist para descrever a condição econômica atual da maior parte do mundo. Isso é uma paródia da ordem econômica, na qual o público geral corre todos os riscos e o setor financeiro recebe todos os lucros – uma forma extraordinariamente pura do que se chamava “socialismo para os ricos”. Mas “socialismo para os ricos” deveria ser uma piada. A verdade é que este é de fato o modo como a economia global está trabalhando.

O sistema financeiro em sua condição atual apresenta uma ameaça existencial à democracia ocidental, excedendo em muito qualquer ameaça terrorista. Nenhuma democracia foi jamais desestabilizada pelos terroristas, mas se os caixas eletrônicos parassem de dar dinheiro haveria problemas em escala que colocariam os estados democráticos hoje constituídos em risco de colapso. Ainda assim, os governos agem como se houvesse muito pouco que pudessem fazer. Eles têm poder legal para nos recrutar e nos mandar para a guerra, mas não podem tratar de quaisquer fundamentos da ordem econômica. Parece bastante claro que a omissão da palavra “capitalismo” por Marx, por ele não prever nenhuma alternativa dentro da ordem social existente, era um momento especial de alta definição no funcionamento de sua bola de cristal.

Marx dá bastante ênfase à questão da origem do valor, de como mercadorias são comercializadas e o que é o dinheiro. É uma questão muito simples, mas que não havia sido feita com tal clareza antes; também é o tipo de questão não mais feita em nível profissional ou institucional, porque a ordem atual das coisas é dada como garantida. Mas é uma questão bastante básica e importante (ou duas questões): o que é o dinheiro e de onde vem seu valor?

Há várias centenas de páginas de Marx sobre esse assunto, e dezenas de milhares nos comentários e análises de sua obra, então meu resumo de sua visão será necessariamente simples e condensado de modo caricatural. O modelo marxiano funciona assim: pressões competitivas sempre forçarão para baixo o custo do trabalho, então os trabalhadores são empregados pelo preço mínimo, pagos sempre apenas o suficiente para mantê-los na ativa, e não mais. O empregador então vende a mercadoria não pelo seu custo de fabricação, mas pelo melhor preço que puder: um preço que por sua vez está sujeito às pressões competitivas, portanto, tendendo sempre a baixar com o tempo. Enquanto isso, porém, há uma lacuna entre pelo quê o trabalhador vende seu trabalho e o preço que o empregador obtém pela mercadoria; esta diferença é o dinheiro acumulado pelo empregador, que Marx chamou de mais-valia. No julgamento de Marx, a mais-valia é a própria base do capitalismo: todo valor no capitalismo é a mais-valia criado pelo trabalho. Isto é o que forma o custo das coisas: como Marx diz, “o preço é o nome em dinheiro do trabalho transformado em mercadoria”. E, ao examinar essa questão, cria um modelo que nos permite ver profundamente a estrutura do mundo, vendo o trabalho oculto nas coisas ao nosso redor. Ele torna o trabalho legível nos objetos e nas relações.

A teoria da mais-valia também explica, segundo Marx, porque o capitalismo tem uma tendência inerente à crise. O empregador, assim como o empregado, sofre pressões competitivas, e o preço das coisas que ele vende sempre tenderão a baixar devido a novos participantes no mercado. Seu modo de superar isso normalmente será introduzir máquinas para tornar os trabalhadores mais produtivos. Ele tentará obter mais deles empregando menos para fazer mais coisas. Mas ao tentar elevar a eficiência da produção, ele pode também destruir o valor, frequentemente produzindo muitos bens sem lucro suficiente, o que leva a uma mais-valia de bens concorrentes, levando a uma quebra no mercado e à destruição massiva do capital, levando ao começo de outro ciclo. É um aspecto harmônico do pensamento marxiano que a teoria da mais-valia leve direta e explicitamente à predição de que o capitalismo sempre terá ciclos de crises, expansão e contração.

Há dificuldades evidentes nos argumentos de Marx. Um deles é que muitos dos bens e mercadorias no mundo contemporâneo são agora virtuais (no sentido digital), tornando difícil ver onde está o trabalho acumulado neles. As palestras de David Harvey sobre O capital, por exemplo, o melhor começo para qualquer um estudando o mais importante livro de Marx, são de imenso valor, mas também estão disponíveis de graça na internet. Se você comprá-las em livro – é mais rápido obter informação lendo do que ouvindo – a mais-valia adicionada é praticamente apenas sua.

A ideia de o trabalho estar oculto nas coisas, e o valor destas surgir do trabalho fixado nelas, é uma ferramenta explicativa inesperadamente poderosa no mundo digital. Por exemplo, o Facebook. Parte de seu sucesso vem do fato de as pessoas sentirem que elas e seus filhos estão a salvo gastando tempo nele, por ser um lugar ao qual se vai para interagir com outras pessoas, mas fundamentalmente não arriscado ou relapso como as novas tecnologias com frequência são percebidas – como, por sua vez, o VHS era quando lançado no mercado. Mas a percepção de que o Facebook é “higiênico” (talvez seja esta a melhor palavra) sustenta-se pelas dezenas de milhares de horas de trabalho mal pago de pessoas no mundo em desenvolvimento que trabalham para empresas contratadas para rastrear imagens ofensivas, pessoas que, de acordo com um marroquino que foi à imprensa reclamar disso, recebem um dólar por hora para fazê-lo. Este é um exemplo perfeito de mais-valia: enormes somas de trabalho precário mal pago criando a imagem higiênica de uma empresa que espera valer 100 bilhões de dólares quando se lançar no mercado de ações neste ano.

Quando se começa a procurar pelo mecanismo em funcionamento no mundo contemporâneo, este é visto por toda parte, frequentemente na forma de mais-valia sendo criada por você, consumidor ou cliente de uma empresa. Check-in online e entrega de malas nos aeroportos, por exemplo. O check-in online é um processo que deveria de fato aumentar a eficiência dos procedimentos nos aeroportos, custando portanto menos tempo, que você pode gastar fazendo outras coisas, algumas economicamente úteis. Mas o que as empresas aéreas fazem é empregar tão poucas pessoas para supervisionar a entrega de malas que no final das contas não há economia de tempo para o passageiro. Quando se observa, vê-se que como as empresas aéreas precisam empregar mais pessoas para supervisionar os passageiros que não fizeram check-in online – caso contrário, os voos não sairão a tempo –, as filas desses passageiros se movem mais rápido. As empresas estão transferindo sua ineficiência para o consumidor, mas também estão transferindo para você o trabalho e acumulando a mais-valia. Isso acontece o tempo todo. Toda vez que você usa um menu via telefone ou serviços de mensagens de voz interativos vocês está doando sua mais-valia para as pessoas com as quais está lidando. O modelo marxiano constantemente insta a ver o trabalho codificado nas coisas e transações ao nosso redor.

No ano passado, a National Geographic apresentou “o ser humano mais comum do mundo” para comemorar o nascimento da sétima bilionésima pessoa. O único ponto sem controvérsia sobre esta pessoa era o fato de ser destra. (Na verdade, embora o uso de uma ou outra mão não seja controverso, isso é interessante visto que a taxa média de existência de canhotos está em mais ou menos 10 por cento, mas parece maior em sociedades com nível maior de violência. Ninguém sabe o porquê, mas sobre isso não há surpresa, pois o motivo de algumas pessoas nascerem canhotas não foi compreendido.) Que a pessoa seja um homem é um desenvolvimento relativamente recente. Nascem mais meninos do que meninas, em uma proporção de 103-106 para 100, porque meninos têm taxa mais alta de mortalidade infantil e, para equilibrar a proporção de gêneros da espécie, são precisos mais meninos. Mas a medicina moderna reduziu agudamente a mortalidade infantil na maior parte do mundo, e agora a diferença nas taxas de nascimento se alimenta de outras distribuições demográficas, as quais historicamente têm mais mulheres porque estas vivem mais, novamente por motivos não compreendidos. Além disso, de modo muito mais sombrio, a crescente prosperidade e as habilidades tecnológicas têm elevado a enormes disparidades nas taxas de nascimento, que só podem ter a ver com o aborto seletivo de meninas. A proporção de gêneros na maior parte da Ásia, em particular, elevou-se muito além dos níveis biologicamente possíveis. Na China e na Índia os dados censitários indicam que o nível nacional está em torno de 120 para 100. Em 2020, a China terá trinta a quarenta milhões de homens a mais do que mulheres abaixo dos 19 anos. Para colocar o número em perspectiva, quarenta milhões é o número total de homens americanos nessa faixa demográfica. Portanto, dentro de oito anos a China enfrentará a previsão de ter o equivalente à população de jovens americanos permanentemente constituída por solteiros. Uma das coisas sombrias sobre isso é que a “preferência por filhos”, como é chamada friamente na literatura, sobe com a renda e com a modernização – ou seja, tem subido fortemente. Isso significa dezenas de milhões de meninas perdidas.

Então “ele” é ele. Ganha menos de 8000 libras por ano. Tem um telefone celular, mas não tem conta bancária. Isso se encaixa no modelo marxiano de como o capitalismo funcionaria: ele não tem uma conta bancária porque o trabalhador típico é um proletário que nada tem para depositar em um banco; ele não tem qualquer capital; ele precisa vender seu trabalho pelo melhor preço que puder. Tem 28 anos – a idade média da população mundial, o “cara do meio”. Se você considerar que a pessoa mais comum do mundo pertence ao grupo étnico mais numeroso, segue-se que é um chinês Han. Então, este humano exemplar em 2012 é um homem chinês da etnia Han, de 28 anos, sem conta bancária, mas com um celular, ganhando em média menos de 8000 libras por ano. Sabem quantas pessoas se encaixam precisamente nestes critérios hoje? Nove milhões. Podemos até mesmo adivinhar seu nome: Lee, ou Li, o sobrenome mais comum no mundo. Há mais pessoas chamadas Lee do que há no Reino Unido e na França somados.

Não acho que Marx veria algo neste retrato que contrariasse seu modelo, para usar uma palavra da qual ele não teria gostado. Ele previu o desenvolvimento de um proletariado que realiza a maior parte do trabalho no mundo e uma burguesia que efetivamente possui o usufruto de seu trabalho. O fato de o proletariado estar no mundo em desenvolvimento, na prática varrido da vista da burguesia ocidental, em nada contraria essa imagem – um “proletariado externo”, como às vezes se chama. Peguemos como estudo de caso desse processo a empresa mais valiosa do mundo, no momento a Apple. O último trimestre da Apple foi o mais lucrativo de qualquer empresa na história: obteve rendimentos de 13 bilhões de dólares e vendas de 46 bilhões. Seus produtos mais vendidos são feitos em fábricas de propriedade da empresa chinesa Foxconn. (Foxconn faz o Kindle para a Amazon, o Xbox para a Microsoft, o PS3 para a Sony e centenas de outros produtos com os nomes de outras empresas na capa – não é um exagero tão grande dizer que ela fabrica todo aparelho eletrônico que há no mundo.) O pagamento inicial da empresa é de 2 dólares por hora, os trabalhadores vivem em dormitórios de seis ou oito camas, pelos quais têm de pagar aluguel de 16 dólares mensais. Sua fábrica em Chengdu, na qual é feito o iPad, trabalha 24 horas por dia e emprega 120.000 pessoas – pense nisso, uma fábrica do tamanho da cidade de Exeter – e nem é a maior instalação da Foxconn: esta fica em Shenzhen e emprega 230.000 pessoas, que trabalham 12 horas por dia, seis dias por semana. A resposta da empresa para escândalo recente sobre taxas de suicídio foi apontar que a taxa de suicídios entre os empregados da Foxconn é na verdade mais baixa que a média chinesa e que recusa milhares de contratações por dia; ambas as afirmações são verdade. Isso é que é chocante. Essas condições são iguais ou melhores do que a maior parte dos empregos equivalentes em fábricas na China, onde a maior parte dos bens do mundo é feita, e essa vida é amplamente vista pelos trabalhadores chineses como preferíveis às alternativas rurais remanescentes. E tudo isso, numa ironia tão grande que quase não há palavra para defini-la, no maior e mais poderoso Estado considerado comunista. Não creio que se possa descrever isso como condições de trabalho oitocentistas, mas estão bem próximas de cumprir o modelo marxiano de um proletariado alienado cujo trabalho é sugado e transformado em lucro para outras pessoas. Nosso Sr. Lee, de 28 anos, pode ser facilmente imaginado trabalhando em uma dessas fábricas.

Os desafios para a visão de Marx sobre onde estaríamos hoje aparecem quando se olha os detalhes. Se for observado o quadro geral, muito do que ele previu se tornou verdade. Temos uma burguesia opulenta que é internacional, mas que no mundo ocidental compõe a maioria da população, e uma força de trabalho proletária amplamente sediada na Ásia. Acrescente a isso a regularidade das crises econômicas, a crescente concentração de riqueza entre os já ricos e as pressões elevadas aparentes em todo lugar sobre a burguesia internacional – o “aperto” sobre a qual lemos tanto. Há um consenso geral de que não há mais refúgios, que não há fuga das mudanças econômicas, que o capitalismo se move em um ritmo mais forte do que os próprios podem se mover. Se você é um soldador, mas sua filha precisa estudar para ser uma engenheira de softwares para ter um emprego, isso é algo para o que provavelmente você e sua sociedade podem se adaptar; se você é um soldador e você precisa estudar de novo para ser engenheiro de softwares no meio de sua carreira produtiva, isso já não é tão fácil. Ainda assim, mudanças nessa escala são o que está implicado nos desenvolvimentos dos mercados de trabalho modernos. Isso é exatamente o que Marx queria dizer quando previu um mundo no qual “tudo que é sólido se desmancha no ar”. Não é, portanto, tão difícil convencer-se de que as previsões de Marx estavam corretas em certo nível de impressionismo.

O erro mais evidente em sua versão do mundo é com a questão das classes. Há algo parecido com o proletariado marxiano clássico disperso pelo mundo. Entretanto, Marx previu que este proletariado se tornaria cada vez mais uma força centralizada e organizada: de fato, esse era um dos motivos pelos quais provar-se-ia tão perigoso para o capitalismo. Criando as condições nas quais o trabalho certamente se organizaria e se reuniria coletivamente, o capitalismo estava obtendo sua própria derrocada. Mas não há um conflito global organizado entre as classes; não há proletariado global organizado. Não há nada sequer próximo a isso. O proletariado está nas filas para entrar na Foxconn, não para organizar greves lá, e o maior perigo que a China encara, que em certo sentido é onde está o proletariado hoje, é a desigualdade causada pelas fraturas entre o novo proletariado urbano e a pobreza rural da qual estão saindo. A China também apresenta tensões entre a costa e o centro e problemas crescentes com corrupção e má administração, que irrompem regularmente no que conhecemos como Incidentes de Grupo em Massa, IGM – basicamente revoltas anti-autoritárias que ocorrem regularmente em toda a China e nunca são relatadas na mídia tradicional ocidental. Mas nenhum desses fenômenos tem a ver com classe, e dada a ênfase posta na obra de Marx na luta de classes organizada, é preciso relacionar isto como uma das previsões que se provaram incorretas.

Por que não? Creio que há dois motivos principais. O primeiro é que Marx não previu, assim como ninguém previu nem acho que alguém poderia, a variedade de formas distintas de capitalismo que surgiriam. Falamos do capitalismo como uma só coisa, mas ele vem em muitos sabores diferentes, envolvendo modelos diferentes. O estado de bem-estar contemporâneo – moradia, educação, alimentação e provisão de saúde para os cidadãos, do nascimento à morte – é um desenvolvimento que desafia a base da análise marxiana do que é o capitalismo: creio que ele observaria de perto o estado de bem-estar e imaginaria que este basicamente minou sua análise, apenas pelo fato de ser muito diferente do capitalismo visto por Marx em funcionamento nos seus dias, a partir do qual ele extrapolou seus dados. Talvez ele argumentasse que a sociedade britânica em sua inteireza se tornou parte de uma burguesia global e o proletariado agora está em outros países; é um argumento possível, mas difícil de sustentar face às desigualdades que existem e estão crescendo em nossa sociedade. Mas o capitalismo de bem-estar escandinavo é muito diferente do capitalismo controlado pelo Estado na China, o qual é por sua vez totalmente diferente do capitalismo de livre mercado salve-se quem puder dos Estados Unidos, que por sua vez é diferente do capitalismo nacionalista e altamente socializado da França, que novamente em nada se parece com o curioso híbrido que temos no Reino Unido, onde nossos governos são totalmente devotos do livre mercado e ainda temos áreas de bem-estar e provimento que eles não se atreveram a abordar. Singapura é considerado um dos países com maior livre mercado no mundo, ficando com frequência no topo ou próximo disso nas pesquisas sobre liberalização dos mercados, e ainda assim o governo possui a maior parte das terras no país e a maioria esmagadora da população vive em moradias socializadas. É a capital mundial do livre mercado e da moradia comunitária. Há vários capitalismos distintos e não está claro que uma simples análise que os abarque todos como se fossem um único fenômeno possa ser válida.

Uma das formas pelas quais isso se dá é a variedade e complexidade de nossos interesses nesse sistema. Em fevereiro, todos os trabalhadores na Foxconn tiveram seu salário básico aumentado em 25 por cento para o turno da noite. Isto não se deu por um ato de organização e protesto por parte da força de trabalho: foi devido a um artigo sobre as condições de trabalho publicado no New York Times. Pressões éticas vindas do Ocidente são uma das forças mais potentes pela melhoria das condições fabris em Shenzhen. Outro exemplo, bastante conhecido no mundo médico, mas não fora dele, é sobre o Mectizan, um medicamento desenvolvido para tratar cegueira dos rios da empresa americana Merck. (As amostras iniciais que continham o composto químico utilizado para fazer o medicamento vieram de um circuito de golfe no Japão.) O medicamento foi desenvolvido por um custo considerável em 1987 e então dado, de graça, perpetuamente, salvando centenas de milhares de pessoas da cegueira e muitas mais de fome por permitir que 25 milhões de hectares de terra antes incultiváveis fossem usados para agricultura. Pode-se espremer isso dentro de um modelo marxiano descrevendo o caso como um golpe publicitário, mas não creio que essa análise funcione, mesmo que apenas por praticamente ninguém no mundo ocidental ter ouvido falar disso.

Isso é algo que Marx não previu e toca em outro fator que não poderia ser previsto. Trata-se da diversidade de nossos interesses e papéis no capitalismo contemporâneo. Marx falava sobre pessoas, de fato classes, como sendo divididas entre trabalhadores e proprietários dos meios de produção, e ele abriu uma concessão ao fato de que somos “portadores” desses papéis, diferentes aspectos os quais podemos desempenhar em momentos diversos, resultando que um proletário pode se ver competindo contra outros proletários, mesmo que seus interesses de classe estejam alinhados. O fato é que no mundo moderno nosso ser é muito mais fragmentado e contraditório que isso. Muitos trabalhadores têm pensões investidas em empresas cujo caminho rumo ao lucro depende de manter em um mínimo o número de trabalhadores que empregam; uma das coisas que levaram à contração do crédito foi a busca pelos fundos de pensão por retornos estáveis maiores para pagar as demandas pensionárias das gerações futuras dos trabalhadores aposentados. Portanto, em muitos casos temos a situação na qual pessoas perdem seus empregos devido a perdas sofridas pela tentativa de oferecer segurança futura para os próprios trabalhadores. Na maioria, somos escravos de salários, beneficiários do estado de bem-estar, financiadores desse estado, ao mesmo tempo em que somos os pensionistas atuais ou futuros que, neste particular se não em outros, são exemplares proprietários burgueses dos meios de produção. É complicado, e as intensas pressões éticas que podem, de modo intermitente, surgir como fardo às empresas são um sintoma da complexidade e multiplicidade dos interesses. É impressionante como variadas empresas se defendem usando a mais simples – e sob o capitalismo clássico, a mais confiável – resposta às críticas ao seu comportamento: nosso papel ético é trazer lucro aos nossos acionistas, gerar empregos e pagar impostos. É isso. O resto fica com o governo. Mas nunca dizem isso, talvez percebendo que intuímos o fato de nossas inter-relações e interesses conflitantes tornarem o mundo mais complicado do que isso.

Por mais complicado que seja o modelo de mundo de Marx, o mundo moderno é ainda mais complicado. Isto exerce grande pressão em mais uma área, que Marx reconheceria por meio de um ditado favorito que vem de Hegel: a quantidade modifica a qualidade. Isso significa que você pode ter um sistema explicativo que abrange certos fenômenos – neste caso, o modo pelo qual o capitalismo produz coisas que vão de encontro à corrente principal de acumulação e exploração – enquanto a direção geral permanece a mesma. Mas chega um ponto em que os fenômenos se amontoam e param de parecer exemplos contraditórios isolados e se assemelham a um desafio basilar às ideias centrais. Algo parecido com isso aconteceu com as contracorrentes no interior do capitalismo.

Tomemos as mais básicas medidas estatísticas sobre a vida, mortalidade infantil e expectativa de vida. Esta era de 43 anos na Grã-Bretanha em 1850, ano em que o Manifesto Comunista foi publicado pela primeira vez em inglês; está abaixo da expectativa de vida no Afeganistão de hoje, que por sua vez é menor do que a de qualquer país não atingido pela epidemia da AIDS. A expectativa de vida no Reino Unido hoje está acima de oitenta e subindo tão agudamente que, encrustado nas estatísticas, há um fato realmente estranho: uma mulher de oitenta anos hoje tem 9,2% de chance de viver até os cem anos, enquanto uma mulher de vinte anos tem 26,6%. Parece estranho que a pessoa sessenta anos mais nova tenha três vezes mais chance de alcançar um século, mas isto mostra o quão rápido se opera o progresso. A mortalidade infantil, frequentemente considerada como indicador de todo um conjunto de coisas (nível de desenvolvimento médico e tecnológico, vigor dos laços sociais, grau de acesso dos pobres a cuidados médicos, reconhecimento social de necessidades alheias), é algo pelo que Marx teria se interessado vivamente. Na Grã-Bretanha vitoriana, a taxa era de 150 mortes a cada mil nascimentos. Hoje, a mortalidade infantil é de 4,7 por mil. Uma melhora de 3191%. (Muitos países alcançaram menores taxas do que nós; estamos na 31ª posição no mundo – o mais baixo de todos é o lugar em que todo mundo vive em moradias comunitárias, com 1,92 por mil.) A taxa de mortalidade infantil global é de 42,09 por mil, um terço da taxa britânica nos dias de Marx. A AIDS causou um efeito terrível nesse caso: a Botsuana, por exemplo, tem expectativa de vida de 31,6 anos, mas de acordo com dados da ONU, subiria a 70,7 anos se removido o impacto da AIDS.

A que ponto este tipo de dados representa um desafio às ideias de Marx? Esses dados mascaram desigualdades significativas – o exemplo notável em Londres é que se você pegar a Jubilee Line a partir de Westminster em direção ao leste, a expectativa de vida masculina decresce um ano a cada parada pelas próximas oito – mas, deixando isso de lado, o quadro mais amplo é que quase todos vivem mais e têm melhor saúde. Se isso é verdade, pode ser verdade que o capitalismo coerente e confiavelmente causa miséria? Pode ser verdade que o sistema é destrutivo se as pessoas que nele vivem simplesmente vivem mais? Tomemos os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, anunciados na virada do século, estabelecendo metas para reduzir a mortalidade infantil em dois terços e a mortalidade materna em três quartos até 2015 do ponto de partida de 1990 (os livros ficaram levemente datados ao estabelecer o ponto de partida dez anos no passado), reduzir à metade o número de pessoas vivendo em pobreza absoluta, duplicar a porcentagem de crianças obtendo pelo menos educação primária. Pode-se ignorar um feito dessa escala? Se um sistema faz isso, pode-se dizer que produz nada além de miséria? O próprio Marx dizia que houve momentos nos quais o modo de produção capitalista poderia se transcender, como na invenção da sociedade anônima. Os indícios posteriores desta possibilidade de transcendência teriam exercido grande pressão em seus modelos intelectuais.

Um desafio final ao modelo marxiano e também ao seu retrato do futuro vem de algo que ele viu bastante clara e profeticamente: o poder produtivo extraordinário do capitalismo. Ele viu como o capitalismo transformaria a superfície do planeta e causaria impacto na vida de cada pessoa viva. No entanto, há uma fissura ou falha próxima ao coração de sua análise. Marx viu os dois polos fundamentais da vida econômica, social e política como trabalho e natureza. Ele não via estas duas como estáticas; usou a metáfora do metabolismo para descrever o modo pelo qual nosso trabalho dá forma ao mundo e por nossa vez somos formados pelo mundo que fizemos. Então os dois polos de trabalho e natureza não permanecem fixos. Mas Marx não levou em consideração o fato de que os recursos naturais são finitos. Ele sabia que não havia algo como a natureza sem forma criada por nossas suposições, mas não compartilhava nossa consciência contemporânea de que a natureza pode zerar. Este é o tipo de coisa chamado às vezes de irônica, embora mais próxima do trágico, e em seu centro está o fato de que o poder produtivo, expansionista, consumidor de recursos do capitalismo é tão grande que é insustentável em nível planetário. O mundo todo deseja ter um estilo de vida de Primeiro Mundo, e todo o mundo pode ver o que é isso na televisão, mas o mundo não pode tê-lo, pois queimaremos todos os recursos antes de chegar lá. A maior crise do capitalismo está sobre nós, predicada no fato inapelável de que a natureza é finita.

Este é um ponto que marxistas em geral tem relutado em abordar, por uma boa razão: o problema dos recursos no mundo de hoje, seja comida, água ou energia em todos os sentidos, têm a ver com a distribuição desigual e não com o fornecimento total. Há mais do que suficiente dessas coisas para todos nós. Escritores e ativistas na tradição marxista tendem a ressaltar esse ponto e estão certos em fazê-lo, mas precisamos também encarar o fato de que o mundo está se encaminhando a consumo e demanda ainda maiores da parte de todos. Todos simultaneamente. Esse fato é o oponente mais mortal do capitalismo. Para dar apenas um exemplo em relação a apenas um recurso, o consumo médio de água americano é de cem galões por pessoa diariamente. Não há água potável suficiente no planeta para todos viverem assim.

A questão é, portanto, se o capitalismo pode desenvolver novas formas, do modo que tem feito até agora, e apresentar mecanismos baseados em propriedade e mercado que impeçam a crise aparentemente inevitável que virá, ou se precisamos de uma ordem social e econômica totalmente diferente. A ironia é que esta ordem pode ser em muitos aspectos como a imaginada por Marx, mesmo tendo ele visto um caminho diferente para alcançá-la. Quando Marx disse que o capitalismo continha a semente de sua própria destruição, não falava sobre mudanças climáticas ou guerras por recursos. Se sentimos tristeza e desânimo na iminência das dificuldades acima, também devemos nos confortar no fato de nossa adaptabilidade imaginativa e engenhosidade que nos levou tão longe tão rápido – tão longe e tão rápido que precisamos agora desacelerar e não sabemos bem como. Marx escreveu, perto do fim do primeiro volume de O capital: “o homem se distingue dos outros animais pela natureza sem limites e flexível de suas necessidades.” Vemos as necessidades sem limites ao nosso redor e elas nos levaram onde estamos, mas precisaremos trabalhar na parte flexível.

Sobre o autor

John Lanchester’s novel The Wall came out earlier this year. His most recent non-fiction book is How to Speak Money.

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