1 de novembro de 2021

O Supremo Tribunal de direita da Espanha está atropelando a democracia

O deputado do Podemos Alberto Rodríguez foi destituído do seu assento no Congresso dos Deputados espanhol na sequência de uma condenação por agressão infundada. O seu afastamento mostra como um Supremo Tribunal repleto de juízes de direita compromete os padrões democráticos básicos do país.

Eoghan Gilmartin



O presidente da Segunda Câmara do Supremo Tribunal de Espanha, Manuel Marchena, em Madrid, 2021. (Gustavo Valiente / Europa Press via Getty Images)

Tradução / "Os votos democráticos de milhares [de cidadãos espanhóis] das Ilhas Canárias estão sob ataque sem base legal", afirmou o ex-deputado do Podemos Alberto Rodríguez após ter sido destituído a 22 de outubro. Este passo foi tomado após ter sido condenado por agredir um agente da polícia - o resultado dúbio do que já era um julgamento altamente politizado.

Até o jornal centrista El País condenou a "dimensão política do caso", declarando que "debilita ainda mais a confiança no sistema judicial" e dá "a aparência de um castigo político" a um deputado do Podemos.

A maioria conservadora da secção criminal do Supremo Tribunal de Espanha condenou Rodríguez apesar da inexistência de provas físicas ou visuais da alegada agressão de 2014, baseando-se exclusivamente no depoimento do agente que o acusava. Com opinião divergente, os dois juízes progressistas daquele tribunal insistiram que as provas estavam "muito aquém" do suficiente para um veredito de culpa e que "é plausível que o agente se tenha enganado ao identificar" Rodríguez.

Este caso também detonou uma grande crise no governo de coligação progressista, após a presidente do Congresso dos Deputados, Meritxell Batet - deputada do Partido Socialista Operário Espanhol, formação do primeiro-ministro, Pedro Sanchez -, ter afastado Rodríguez do cargo. Agora, o Unidas Podemos exigiu a demissão de Batet, acusando-a de "não defender o poder legislativo de uma intervenção inaceitável do poder judicial". Batet insistiu que não tinha escolha na execução do que considerava ser a sentença do Supremo Tribunal. Mas a equipa jurídica do congresso reforçou que a decisão do tribunal só tinha impedido Rodríguez de se candidatar em eleições futuras no decorrer do período da pena suspensa.

No entanto, em última análise, estas posições contraditórias só podem ser percebidas no contexto de uma campanha implacável de guerra legal que está a ser travada pelos escalões superiores do poder judicial contra o governo - e da hesitação do PSOE em confrontar esses juízes politizados e reacionários.

A ação de Batet adveio de uma pressão intensa do primeiro magistrado do caso, Manuel Marchena, da ala direita, que redigiu um esclarecimento duas semanas após a decisão do tribunal, quando parecia que o parlamento não iria tomar qualquer ação disciplinar contra Rodríguez.

Nele, Marchena insistiu que a decisão tinha insinuado que o deputado devia ser destituído, acrescentando que a presidente era obrigada a agir, embora sem explicar porquê. Para o El País, tal foi uma “conclusão bizarra” a retirar. Mas, não querendo entrar em confronto com o Supremo Tribunal e com os partidos de direita, que já ameaçavam mover processos legais contra ela no mesmo tribunal se Rodríguez não fosse afastado, Batet cedeu.

Ao priorizarem a respeitabilidade e agirem imediatamente pela paz, Batet e o PSOE provavelmente só encorajaram mais ataques do poder judicial e das forças de segurança. Estas forças, em conjunto com uma direita parlamentar radicalizada e meios de comunicação conservadores, pretendem desestabilizar a coligação e a maioria multipartidária progressista no congresso.

Uma condenação fabricada

As acusações contra Rodríguez remontam a uma série de confrontos entre protestantes e polícia numa marcha anti-governo em janeiro de 2014, em Tenerife. Mas o então sindicalista só foi informado de que era suspeito de ter agredido um agente da polícia na manifestação meses depois. Tanto Rodríguez como outras testemunhas insistiram que este não estava presente nos confrontos, mas a 600 metros, no outro extremo da marcha.

A investigação inicial parou e só foi reaberta em 2017, após se ter tornado deputado do Podemos, tendo o Supremo Tribunal dado luz verde para o julgamento no início de 2021. O agente em cujo depoimento o caso se baseou afirmou que Rodríguez o tinha pontapeado no joelho, mas também admitiu em tribunal que o suposto pontapé não tinha deixado marca física. Rodríguez nunca aparece nos vídeos dos confrontos entre a polícia e os protestantes (nos quais o agente está claramente visível), e nenhum outro agente no local conseguiu identificá-lo como presente no momento.

"De um ponto de vista estritamente legal, a decisão prejudica seriamente o direito fundamental à presunção de inocência", defende o professor de Direito Constitucional Joaquin Urias. “Uma pessoa não pode ser condenada por um crime baseado somente no depoimento da vítima.” E continua: “a mensagem que a decisão passa é a de que quando um membro das forças de segurança faz a acusação, o ónus da prova é invertido e o acusado tem de provar a sua inocência. O facto de a condenação vir do Supremo Tribunal indica que todos os juízes espanhóis se verão agora no direito de condenar outros ativistas em circunstâncias semelhantes."

Esta é uma preocupação particular pois a condenação forjada de Rodríguez é apenas um do leque de casos recentes que visaram ativistas e funcionários da esquerda e que se fundamentaram exclusivamente no depoimento da polícia (embora, até agora, ao menos se tivessem baseado em várias fontes).

Num caso muito semelhante ao de Rodríguez, Isa Serra - antiga dirigente do Podemos na região de Madrid - foi sentenciada a uma pena suspensa de 19 meses e afastada de um cargo público por uma alegada agressão a um agente da polícia num protesto contra despejos em 2014. A sua equipa de defesa submeteu mais de uma centena de vídeos que mostravam o seu comportamento não violento durante o protesto, mas o juiz alinhou com o testemunho dos agentes envolvidos, apesar das várias declarações contraditórias e das incongruências nas provas.

Em janeiro, em Saragoça, um grupo de seis jovens antifascistas foi sentenciado a penas de prisão entre um e sete anos por alegados tumultos - o que o grupo nega. “Não há provas [do seu envolvimento], mas o único critério que o juiz utilizou para apurar os factos foi o depoimento da polícia, assumindo simplesmente a sua veracidade”, insistiram os pais de um dos jovens.

Mesmo a atual vice-presidente do governo de Espanha e líder do Unidas Podemos, Yolanda Díaz, só escapou a acusações de agressão decorrentes da participação num protesto de greve à porta do parlamento, em 2019, devido à forte presença dos meios de comunicação social. O nível de cobertura garantiu que as acusações dos agentes contra ela e outros dois deputados do partido fossem categoricamente refutadas.

Manipulando o sistema

A injustiça da condenação de Rodríguez também é uma reflexão do enviesamento e da composição política do tribunal que o julgou, com a segunda câmara do Supremo Tribunal repleta de integristas do partido de direita Partido Popular (PP). Numa mensagem de WhatsApp divulgada em 2019, aquando do julgamento por sedição dos líderes independentistas catalães, o senador do PP Ignacio Cosidó gabava-se de que o seu partido conseguia “controlar [o tribunal] nos bastidores”. Desde que Aznar chegou ao poder, em 1995, o PP adotou uma estratégia implacável de colonização do sistema judicial - sobretudo apropriando-se do sistema pelo qual os magistrados são designados.

O Supremo Tribunal tem sido um alvo particularmente essencial para o partido. Em 1995, o Supremo Tribunal tinha sete juízes progressistas e seis conservadores, ao passo que em 2020, a composição tinha mudado radicalmente, com 11 conservadores e apenas dois progressistas.

Tal foi atingido com uma jogada vinda diretamente do manual de instruções dos republicanos, dos EUA: bloquear a renovação do corpo oficial que designa os magistrados (conhecido como o Conselho Superior da Magistratura) sempre que o PP se encontra na oposição. Atualmente, a renovação do conselho requer 60% dos votos do parlamento, portanto tal só é possível com um acordo dos partidos maioritários.

Uma vez que o PP se recusa a fazê-lo, inconstitucionalmente pode manter controlo das seleções judiciais além do mandato de cinco anos do conselho existente. A sua configuração atual remonta a 2013, quando Mariano Rajoy, do PP, era primeiro-ministro; o mandato expirou há bastante tempo, mas mesmo no atual modo “provisório”, a maioria do PP continua a usar o seu poder para nomear magistrados.

Incapacidade de ação

No contexto deste uso da magistratura como arma, a ideia de que um falso pontapé no joelho podia ser utilizado como motivo suficiente para que o Supremo Tribunal destituisse um deputado eleito da sua posição tem implicações particularmente sinistras. Não é caso para menos, dado que a sua destituição foi conseguida não como sanção legal explícita, contida na sentença escrita, mas através de pressão política dirigida à presidente Batet.

Iglesias argumentou que o primeiro magistrado, Marchena, não queria condenar Rodríguez a exclusão “ativa” de cargos públicos na sentença oficial do julgamento, uma vez que já tinha sido sancionado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em 2017 pelo caso Atutxa, que envolvia a exclusão indevida dos deputados bascos. Não queria arriscar uma nova condenação do tribunal de Estrasburgo, que provavelmente acabaria com a sua carreira.

Ainda assim, duas semanas após a condenação, no esclarecimento, Marchena procurou impor a decisão a Batet, que por sua vez escolheu ignorar o parecer da equipa jurídica parlamentar e alinhar com o juiz horas após ter recebido o esclarecimento escrito. “Meritxel Batet, que sabe que o julgamento contra Alberto Rodríguez foi inaceitável, retira-lhe o estatuto de deputado”, escreveu Iglesias no Twitter. “Como na República de Weimar, o monstro avança com aliados.”

A tímida rendição de Batet é reveladora do amplo fracasso do PSOE em formar uma estratégia para lidar com o ativismo judicial. Mas, ao passo que o PSOE se mantém fiel às velhas regras do jogo e ao consenso partidário, uma direita radicalizada (tanto no parlamento como nos tribunais) vê tal como simplesmente uma fraqueza a ser explorada.

Tal como há necessidade de resposta política a Trump e à captura do Supremo Tribunal dos Estados Unidos pelo Partido Republicano, há opções legislativas disponíveis para Sánchez. Ainda assim, como a liderança do Partido Democrata, este parece paralisado ao enfrentar a necessidade de intervir e instituir reformas. Tal como os democratas não têm apetência para aumentar o número de juízes do Supremo Tribunal e restabelecer o equilíbrio anterior no tribunal, Sánchez e o PSOE têm falta de vontade para reduzir o limite parlamentar para a renovação do Conselho de Magistratura, mesmo três anos após o mandato dos representantes anteriores ter terminado.

A sua estagnação deve-se parcialmente a um apego centrista do que deve ser uma “política de Estado”, bem como a um receio profundo dos meios de comunicação social, da repercussão negativa e da provável oposição da UE a qualquer alteração da legislação. Outra questão é que quebraria o monopólio bipartidário da nomeação de juízes de topo, forçando-os a ceder lugares no conselho a organizações como Unidas Podemos e a Esquerda Republicana de Catalunha.

Tal é ainda impensável, mas a alternativa não é clara. “Pensar, neste momento, que pode ser possível um acordo com o PP para renovar o conselho é, na minha opinião, ingénuo”, insiste Iglesias. “[O líder do PP] Pablo Casado não tem a menor intenção de corresponder... uma vez que a situação atual o protege e permite-lhe atacar os adversários.”

Portanto, a coligação permanece exposta a mais assédio judicial, mesmo quando procura navegar nas tensões internas e na desconfiança motivadas pela destituição de Rodríguez. Entretanto, Rodríguez anunciou a sua retirada da vida política, renunciando à função interna no Podemos. Prometendo continuar a lutar para limpar o seu nome, foi recebido por centenas de apoiantes no aeroporto de Tenerife após ter deixado Madrid, onde reconheceu que “eles ganharam por agora”.

Ilustrando os seus valores de esquerda, Rodríguez insiste agora em regressar à sua classe e ao seu povo. "Pedi a minha reintegração no meu posto de trabalhador industrial [numa refinaria de petróleo]", escreveu no Facebook, na passada sexta-feira.

E continua: “Nunca vi a representação política como um meio individual para ganhar a vida a todo o custo; deve ser o oposto; um período de generosidade e de grande esforço pessoal que pretende defender os direitos e as liberdades do nosso povo... Agora volto ao meu trabalho e profissão, para ganhar o meu pão e continuar a construir experiências de vida e lutas partilhadas com os meus camaradas trabalhadores.»

Rodríguez representou o melhor do Podemos e da esquerda espanhola, demonstrando que nem todos os políticos são iguais. É por isso que foi incriminado e que já não está no Congresso dos Deputados.

Magistrados contra a democracia

No entanto, muitos destes integristas do PP na hierarquia judicial também assumiram um papel cada vez mais intervencionista na política espanhola, em particular fazendo oposição à coligação PSOE-Unidas Podemos. “Em Espanha, há um problema com a separação de poderes”, escreve o chefe de redação do El Diario, Ignacio Escolar. “Não é o governo que está a ultrapassar os poderes que lhe são atribuídos, mas sim o sistema judicial. O último procura exercer funções que não são suas e intervir na política… Há já algum tempo, a direita política tem vindo a agir em coordenação com a ala direita da sistema judicial.”

Tal tem sido claro nos últimos meses, relativamente à política do governo sobre a crise territorial catalã, tendo o Supremo Tribunal procurado comprometer os movimentos da coligação para reduzir tensões com o governo regional independentista da Catalunha.

Primeiro, em maio, quando o primeiro-ministro se preparava para indultar os líderes catalães presos, o Supremo Tribunal emitiu um relatório sobre o caso, que, refere Escolar, expressava o seu desacordo, baseando-se maioritariamente em motivos polémicos em vez de argumentos mais estritamente legais. Numa linguagem que lembra os objetos de discussão do PP, o relatório alega que os indultos não se justificavam porque a sua emissão constituiria, na realidade, auto-indulto - uma alusão ao facto de a maioria do governo no parlamento depender de votos independentistas -, enquanto também os descartava porque os prisioneiros não mostraram remorsos.

Mais tarde, em setembro, o juiz do Supremo Tribunal Pablo Llarenas solicitou a extradição de Carles Puigdemont, líder catalão exilado em Itália, aumentando tensões uma vez mais. A probabilidade de os tribunais italianos concederem o pedido era muito reduzida, visto que o Tribunal de Justiça da União Europeia ainda não tinha resolvido a questão da imunidade parlamentar por Puigdemont ser eurodeputado. Llarena tinha de ter conhecimento disso, portanto o objetivo real do mandado era político: acabar com as negociações em curso entre o governo catalão e espanhol.

Outro exemplo desta sabotagem judicial foi a decisão excecional tomada pela escassa maioria conservadora no Tribunal Constitucional ao declarar inconstitucional o estado de alerta aprovado pelo governo no início da pandemia.

O caso, que foi trazido pelo partido de extrema-direita Vox e que viu os magistrados votarem segundo linhas partidárias e ideológicas, derrubou retroativamente a base legal para o confinamento inicial de três meses do país. Nos últimos meses, o tribunal também alinhou com o Vox na inconstitucionalidade do segundo confinamento no outono, bem como restrições mais específicas relacionadas com a covid-19, como o número de deputados na câmara parlamentar.

No entanto, o impulso central da campanha contra a coligação tem vindo sob a forma de falsas investigações criminais de vários ministros, que têm visto procuradores de justiça, juízes e polícia a pactuar repetidamente para comprometer a autoridade do executivo.

Em maio de 2020, a coligação foi abalada por uma investigação centrada no ministro do Interior do PSOE, Fernando Grande-Marlaska, e na alegada negligência do governo ao permitir que a Marcha Mundial das Mulheres 2020, prosseguisse, em Madrid, dias antes do impacto pandémico (uma grande teoria da conspiração da extrema-direita). Acabou com representantes máximos da Guardia Civil (inclusive o oficial de comando da região de Madrid) a serem destituídos dos seus postos por falsificação de um relatório-chave. Não antes de um responsável do governo, José Manuel Franco, do PSOE, ter sido acusado de ato ilícito pela juíza da ala direita Carmen Rodríguez-Medel.

O antigo vice-presidente do governo Pablo Iglesias também foi sujeito a meses de investigações judiciais e um frenesim mediático sobre afirmações infundadas de que encenou o roubo do telemóvel da sua assessora (que foi, de facto, retirado por um agente da polícia corrupto que espiava Iglesias e o partido).

A antiga ministra dos Negócios Estrangeiros Arancha González Laya permanece sob investigação por ato ilícito e falsificação de documentos relacionados com a entrada do líder da Frente Polisário em Espanha para obter assistência médica. E a ministra da Igualdade, Irene Montero, está a ser investigada por alegadamente usar a assessora governamental como ama (cuja principal prova é um pequeno vídeo em que a assessora por acaso está a segurar na criança).

Mesmo que haja pouca esperança que este tipo de investigações chegue a julgamento, elas funcionam como formas bastante eficazes de oposição, uma vez que envolvem o governo em controvérsias sem sentido, estimulam a polarização e cansam e desmoralizam os envolvidos.

Entretanto, à medida que as provas documentadas aumentam os escândalos de corrupção que envolvem o antigo primeiro-ministro Mariano Rajoy e o círculo central do seu governo, a magistratura recusa-se até a abrir investigações contra estes - contendo meticulosamente a natureza das condenações, à semelhança do antigo tesoureiro do PP Luis Bárcenas.

Colaborador

Eoghan Gilmartin é escritor, tradutor e colaborador da Jacobin radicado em Madrid.

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