4 de dezembro de 2011

"A ameaça iraniana": Quem é o maior perigo para a paz mundial?

Os EUA não estão tomando medidas práticas para garantir um Oriente Médio livre de armas nucleares, diz o autor.

Noam Chomsky



Editor’s note: Over the past week various elements both in Washington DC and Tel Aviv have been promoting a renewed rhetoric of an Iranian threat. Back in July of last year, Professor Chomsky wrote the following commentary on the issue that resonates even louder today. 

Tradução / Há grande alívio e otimismo em todo o mundo sobre o acordo nuclear alcançado em Viena entre o Irão e os países do grupo P5+1, os cinco membros com poder de veto no Conselho de Segurança da ONU, mais a Alemanha. A maior parte dos países partilha aparentemente da avaliação da Associação de Controle de Armas dos EUA, segundo a qual “o Plano Integral de Ação Conjunta estabelece por um período superior a uma geração uma fórmula poderosa e eficiente de bloqueio de todas as vias pelas quais o Irã poderia adquirir materiais para armas nucleares e um sistema de verificação que durará indefinidamente para rápida detecção e dissuasão de possíveis tentativas do Irã para secretamente procurar conseguir armas nucleares.”

Há contudo notáveis exceções ao entusiasmo geral: os Estados Unidos e os seus mais próximos aliados, Israel e Arábia Saudita. Uma consequência disto é que as grandes empresas americanas, com muita pena sua, estão impedidas de se juntar em Teerã às suas análogas europeias. Setores proeminentes do poder e da opinião americanos partilham a posição dos dois aliados regionais e por isso encontram-se em estado de virtual histeria com a “ameaça iraniana.” Comentários a sério que atravessam o leque das opiniões nos Estados Unidos afirmam esse país como “a mais grave ameaça para a paz mundial.” Mesmo apoiadores do acordo são cautelosos, dada a excepcional gravidade dessa ameaça. Ao fim e ao cabo, como podemos confiar nos iranianos com o seu terrível palmarés de agressão, violência, revoltas e enganos?

A oposição no interior da classe política é tão forte que a opinião pública mudou rapidamente do apoio significativo ao acordo para um empate. Os republicanos opõem-se quase unanimemente ao acordo. As atuais primárias republicanas ilustram as razões proclamadas. O senador Ted Cruz, considerado um intelectual dentro do numeroso grupo de candidatos presidenciais, avisa que o Irã ainda pode fabricar armas nucleares e poderia um dia usar uma delas para efetuar um Pulso Eletro-Magnético que “deitaria abaixo a rede elétrica de toda a costa leste” dos Estados Unidos, matando “dezenas de milhões de americanos.”

Os dois mais prováveis vencedores, o antigo governador da Florida, Jeb Bush, e o governador do Wisconsin, Scott Walker, discutem sobre se bombardeiam o Irã imediatamente a seguir à eleição ou depois da primeira reunião do governo. O candidato com alguma experiência de política externa, Lindsey Graham, apresenta o acordo como “uma sentença de morte para o estado de Israel,” o que certamente cai como uma surpresa para a espionagem israelense e para os analistas de estratégia e que Graham sabe ser um completo disparate, levantando de imediato dúvidas sobre a sua real motivação.

Lembremos que os republicanos há muito abandonaram a pretensão de funcionarem como um partido do Congresso normal. Conforme observou o respeitado comentador político conservador Norman Ornstein do American Enterprise Institut, tornaram-se uma “insurgência radical” que mal procura participar na política normal do Congresso.

Desde o tempo do presidente Ronald Reagan, a liderança do partido mergulhou tão fundo nos bolsos dos muito ricos e do setor das grandes empresas que só consegue atrair votos mobilizando a parte da população não previamente organizada em forças políticas. Entre elas, estão os cristãos evangélicos extremistas, que é talvez agora a maioria dos eleitores republicanos, descendentes dos antigos estados esclavagistas, nacionalistas aterrorizados com a ideia de que “eles” estão a conquistar-nos o nosso país, branco, cristão e anglo-saxônico, e outros que transformam as primárias republicanas em espetáculos à parte na corrente dominante das sociedades modernas, ainda que não na que domina o mais poderoso país da história mundial.

O afastamento da norma geral vai contudo muito para além dos limites da insurgência radical republicana. Através do leque político, existe por exemplo concordância geral com a “pragmática” conclusão do general Martin Dempsey, chefe da Junta de Estado-Maior, de que o acordo de Viena não “impede os Estados Unidos de atacar as instalações iranianas, se os funcionários decidirem que estão fazendo batota com o acordo”, embora um ataque militar unilateral seja “muito menos provável” se o Irã se portar bem.

O antigo negociador de Clinton e Obama para o Oriente Médio, Dennis Ross, tipicamente recomenda que “o Irã não deve ficar com dúvidas de que, se o virmos aproximar-se da arma, isso desencadeia o uso da força”, mesmo após o fim do acordo, quando o Irã teoricamente estiver livre de fazer o que entender. De fato, a existência de um prazo final para daqui a 15 anos é, conforme acrescenta, “o único problema importante do acordo.” Sugere também que os EUA forneçam a Israel bombardeiros B-52 especialmente equipados e bombas anti-bunker para se protegerem antes de tão terrível data chegar.

“A maior ameaça”

Os opositores do acordo nuclear criticam que ele não vai suficientemente longe. Alguns apoiantes concordam com isso, mantendo que “se o acordo de Viena significar alguma coisa, então todo o Médio-Oriente tem que se ver livre das armas de destruição massiva.” O autor destas palavras, o ministro iraniano dos Negócios Estrangeiros, Javad Zarif, acrescentou que “o Irão, dentro da sua capacidade nacional e como atual presidente do Movimento dos Não-Alinhados [governos de grande maioria da população mundial], está preparado para trabalhar com a comunidade internacional para alcançar esses objetivos, sabendo muito bem que, ao longo do caminho, há-de encontrar muitos obstáculos levantados pelos céticos da paz e da diplomacia.” O Irão assinou “um acordo nuclear histórico”, continua ele, e agora chegou a vez do “renitente” Israel.

Israel, claro, é uma das três potências nucleares, junto com a Índia e o Paquistão, cujos programas de armas receberam ajuda dos Estados Unidos e se recusam a assinar o Tratado de Não-Proliferação (TNP).

Zarif referia-se à conferência normal de revisão do TNP de cinco em cinco anos, que terminou sem êxito em abril quando os EUA, acompanhados pelo Canadá e Grã-Bretanha, uma vez mais bloquearam os esforços no sentido de uma zona livre de armas de destruição massiva no Médio-Oriente. Esses esforços foram conduzidos pelo Egipto e por outros estados árabes durante 20 anos. Conforme Jayantha Dhanapala e Sérgio Duarte, figuras cimeiras na promoção desses esforços no seio do TNP e noutras agências das Nações Unidas, observam no artigo do boletim da Associação para o Controle de Armas “Há futuro para o TNP?”: “O êxito da adoção da resolução sobre o estabelecimento de uma zona livre de armas de destruição massiva (ADM) no Médio-Oriente em 1955 foi o principal elemento de um pacote que permitiu a extensão indefinida do TNP.” O TNP, por sua vez, constitui o mais importante tratado de controle de armamento. Se fosse adotado, terminaria com o flagelo das armas nucleares.

A aplicação da resolução tem sido repetidamente bloqueada pelos EUA e mais recentemente pelo presidente Obama em 2010 e de novo em 2015, conforme Dhanapala e Duarte salientam, “em nome de um estado que não é parceiro do TNP e que é largamente conhecido como sendo o único da região a possuir armas nucleares”, uma elegante e discreta referência a Israel. Este fracasso, esperam eles, “não será o golpe de misericórdia nos dois objetivos de longo prazo do TNP para acelerar o avanço do desarmamento nuclear e o estabelecimento de uma zona livre de ADM no Médio-Oriente.”

Uma zona livre de armas nucleares no Médio-Oriente seria uma maneira prática de lidar com qualquer alegada ameaça representada pelo Irão, mas há muito mais em jogo na contínua sabotagem dessa iniciativa por Washington para proteger o seu cliente israelita. Ao fim e ao cabo, não é o único caso em que a oportunidade para acabar com a alegada ameaça iraniana foi sabotada por Washington, o que levanta questões sobre o que está de facto em causa.

Ao considerar esta questão, é instrutivo verificar tanto os pressupostos da situação que não são mencionados, como as questões que raramente são encaradas. Consideremos alguns desses pressupostos, começando com o mais sério: que o Irão é a mais grave ameaça à paz mundial.

Nos EUA, é cliché virtual entre os altos funcionários e comentadores que o Irão é o campeão desse sinistro campeonato. Há um outro mundo fora dos EUA e, embora as suas perspetivas não sejam referidas nos órgãos de opinião dominantes, talvez elas tenham interesse. De acordo com as agências de opinião ocidentais (WIN/Gallup International), o campeonato da “maior ameaça” é ganho pelos EUA . O resto do mundo vê-os como a mais séria ameaça à paz mundial por grande margem. No segundo lugar, bastante abaixo, está o Paquistão com uma pontuação possivelmente exagerada pelo voto indiano. O Irão está classificado bastante abaixo desses dois, junto com a China, Israel, Coreia do Norte e Afeganistão.

“O maior apoiador mundial do terrorismo”

Quanto à seguinte questão óbvia, qual é de facto a ameaça iraniana? Porquê, por exemplo, tremem de medo Israel e a Arábia Saudita com esse país? Seja qual fôr a ameaça, dificilmente poderá ser militar. Há anos, a espionagem americana informou o Congresso que o Irão tem despesas militares muito pequenas comparadas com a norma na região e que a doutrina estratégica que segue é defensiva, isto é, preparada para dissuadir agressões. O grupo de informações americanas relatou igualmente não ter qualquer prova de que o Irão esteja a prosseguir qualquer programa de armas nucleares e que “o programa nuclear do Irão e a sua vontade de manter aberta a possibilidade de desenvolver armas nucleares faça parte da sua estratégia de dissuasão.”

A respeitada revista de armamento global SIPRI coloca os EUA, como habitualmente, à cabeça das despesas militares. A China vem em segundo, com cerca de um terço das despesas americanas. Bastante abaixo, ficam a Rússia e a Arábia Saudita, que no entanto estão bem acima de qualquer estado da Europa ocidental. O Irão é pouco mencionado . Os detalhes completos encontram-se no relatório de Abril do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS) que acha “concludente os estados do Golfo da Arábia terem… esmagadora vantagem sobre o Irão quer em despesas militares, quer no acesso a armamento moderno.”

As despesas militares do Irão, por exemplo, são uma fração apenas da Arábia Saudita e mesmo muito inferiores às dos Emiratos Árabes Unidos (EAU). No seu conjunto, os estados do Concelho de Cooperação do Golfo (Bahrain, Kuwait, Oman, Arábia Saudita e EAU) ultrapassam o Irão por um fator de oito, um desequilíbrio que vem de há décadas. O relatório do CSIS acrescenta: “Os estados do Golfo da Arábia adquiriram e estão a adquirir algumas das mais avançadas e eficientes armas do mundo, [enquanto] o Irão tem essencialmente sido obrigado a viver no passado, baseado muitas vezes em sistemas fornecidos originalmente no tempo do Xá.” Por outras palavras, são virtualmente obsoletos. No que se refere a Israel, evidentemente que o desequilíbrio é ainda maior. Com o armamento americano mais avançado e uma base militar virtual offshore para a superpotência global, tem um grande stock de armas nucleares.

Na verdade, Israel enfrenta a “ameaça existencial” das declarações iranianas. O Supremo Líder Khamenei e o antigo presidente Mahmoud Ahmadinejad ficaram famosos por o ameaçarem de destruição. Só que eles não o fizeram - e, se o tivessem feito, teria sido por pouco tempo. Ahmadinejad, por exemplo, previu que “pela graça de Deus [o regime sionista] será varrido do mapa.” Por outras palavras, mostrou esperança em que uma mudança de regime algum dia aconteça. Mesmo isso está muito aquém dos apelos diretos de Washington e Tel Aviv para uma mudança de regime no Irão, para não falar das ações empreendidas para se efetuar tal mudança. São as que remontam à efetiva “mudança de regime” de 1953, quando os Estados Unidos e a Grã-Bretanha organizaram um golpe militar para derrubar o governo parlamentar do Irão e instalar a ditadura do Xá, o qual iniciou uma coleção das piores violações de direitos humanos no mundo.

Estes crimes são certamente conhecidos de quem lê os relatórios da Amnistia Internacional e outras organizações de direitos humanos, mas não dos leitores da imprensa americana, a qual tem devotado imenso espaço a violações de direitos humanos pelo Irão, mas apenas desde 1979 quando o regime do Xá foi derrubado. (Para confirmar este facto, leia-se>em> The U.S. Press and Iran, um estudo cuidadosamente documentado por Mansour Farhang e William Dorman.)

Nada disto difere do normal. Os Estados Unidos, como bem se sabe, detêm o título de campeão mundial de alterações de regimes, enquanto Israel também não é para desprezar. A mais destruidora das suas invasões do Líbano, em 1982, foi expressamente dirigida para alterar o regime, assim como para garantir o seu domínio dos territórios ocupados. Os pretextos utilizados eram realmente fracos e esboroaram-se num instante. Também isso não é raro e bastante independente da natureza do país em causa, desde as queixas na Declaração de Independência sobre “os impiedosos selvagens índios”, até à defesa da Alemanha perante o “terror selvagem” dos polacos por Hitler.

Nenhum analista sério acredita que o Irão alguma vez use, ou mesmo ameace usar, a arma nuclear caso tenha alguma e dessa forma enfrente a imediata destruição. Existe no entanto real preocupação que uma arma nuclear possa cair em mãos jihadistas, não graças ao Irão, mas através do aliado americano Paquistão. No boletim do Royal Institute of International Affairs, dois importantes cientistas nucleares paquistaneses, Pervez Hoodbhoy e Zia Mian,escrevem que o receio crescente de “militantes que possam roubar armas ou materiais nucleares e desencadear terrorismo nuclear [levaram à]… creação de uma força especial de 20.000 soldados para guardar as instalações nucleares. Não há razão para supor, no entanto, que esta força seja imune aos problemas associados às unidades que guardam as instalações militares normais,” que frequentemente sofrem ataques com “ajuda interna.” Em resumo, o problema é real, apenas deslocado para o Irão devido a fantasias engendradas por outras razões.

Outras preocupações sobre a ameaça iraniana incluem o seu papel como “o mais importante apoiante mundial do terrorismo,” que se refere principalmente ao seu apoio ao Hezbollah e ao Hamas. Ambos estes movimentos emergiram da resistência à agressão e violência israelita apoiada pelos EUA, a qual ultrapassa de longe tudo o que lhes possa ser atribuído, para não falar da prática corrente da potência hegemónica cuja campanha global de assassínios com drones domina o terrorismo internacional e ajuda a alimentá-lo.

Esses dois celerados clientes iranianos comungam também o crime de ganhar o voto popular nas únicas eleições livres do mundo árabe. O Hezbollah é culpado do ainda mais odioso crime de obrigar Israel a retirar-se do sul do Líbano, cuja ocupação teve lugar décadas atrás em violação de decisões do Conselho de Segurança da ONU, incluindo um regime ilegal de terror e por vezes extrema violência. Seja o que fôr que se pense do Hezbollah, do Hamas, ou de outros beneficiários do apoio iraniano, o Irão dificilmente faz parte dos apoiantes do terrorismo mundial.

“Alimentar a instabilidade”

Outra preocupação, comunicada na ONU pela embaixadora americana Samantha Power, é a “instabilidade alimentada pelo Irão, para além do seu programa nuclear.” Os Estados Unidos continuam a vigiar esta má conduta, disse ela. Ao fazê-lo, fez-se eco da garantia que o secretário da Defesa Ashton Carter ofereceu ao dizer na fronteira norte de Israel que “continuaremos a ajudar Israel contra a influência maligna do Irão” no apoio ao Hezbollah e que os EUA se reservam o direito de usar a força militar contra o Irão quando o julgarem apropriado.

A forma como o Irão “alimenta a instabilidade” pode ser vista com particular dramatismo no Iraque onde, entre outros crimes, foi sozinho em socorro dos curdos que se defendiam da invasão por militantes do Estado Islâmico, ao mesmo tempo que constrói uma central elétrica de 2.500 milhões de dólares na cidade-porto do sul Basra, tentando fazer regressar a potência elétrica instalada ao nível anterior à invasão de 2003. A forma como a embaixadora Power fala é típica, quando devido a essa invasão foram mortos centenas de milhares, surgiram milhões de refugiados, foram cometidos atos de tortura bárbaros (os iraquianos compararam a destruição à invasão mongol do século XIII), deixando o Iraque como o mais desgraçado país do mundo de acordo com a sondagem WIN/Gallup. Entretanto, estalou um conflito sectário que despedaçou a região e abriu caminho à criação da monstruosidade que é o ISIS. E a tudo isso chama ela “estabilização.”

Só as vergonhosas ações do Irão, contudo, “alimentam a instabilidade.” A interpretação típica atinge por vezes níveis quase surrealistas, como quando o comentador James Chace, antigo editor da Foreign Affairs, explicou que os EUA procuraram “desestabilizar um governo marxista livremente eleito no Chile” porque “estávamos determinados a procurar a estabilidade” sob a ditadura de Pinochet.

Há outros que estão danados com o facto de Washington negociar com um regime “desprezível” como o do Irão, com o seu horrível registo de direitos humanos, e que pressionam para que em vez disso se procure “uma aliança sob os auspícios americanos entre Israel e os estados sunitas.” Assim escreve Leon Wieseltier, editor colaborador do venerável jornal liberal Atlantic, que mal consegue disfarçar o seu ódio visceral a tudo que é iraniano. Com ar sério, este respeitado intelectual liberal recomenda que a Arábia Saudita, ao lado da qual o Irão é como um paraíso virtual, e Israel, com os seus viciosos crimes em Gaza e por todo o lado, deviam aliar-se para ensinarem esse país a portar-se bem. Talvez a recomendação não seja de todo desrazoável quando consideramos o registo de direitos humanos dos regimes que os Estados Unidos têm imposto e apoiado em todo o mundo.

Embora o governo iraniano seja sem dúvida uma ameaça para o seu próprio povo, não há lamentavelmente registos seus nesse campo, pelo menos ao mesmo nível dos aliados favoritos dos Estados Unidos. No entanto, isso parece não interessar a Washington e muito menos a Tel Aviv ou Riyadh.

Seria também útil lembrar (certamente que os iranianos o fazem) que nem um só dia passou desde 1953 sem que os Estados Unidos tenham prejudicado os iranianos. Ao fim e ao cabo, a partir do momento em que derrubaram em 1979 o odioso regime do Xá imposto pelos EUA, Washington passou a apoiar o líder iraquiano Saddam Hussein que haveria de lançar em 1980 um assalto assassino ao seu país. O presidente Reagan foi ao ponto de negar o maior crime de Saddam, o ataque de guerra química à população curda do Iraque, culpando o Irão por isso. Quando Saddam foi julgado pelos seus crimes sob os auspícios dos americanos, esse crime horrível, tal como outros nos quais os EUA foram cúmplices, foi cuidadosamente excluído das acusações, as quais ficaram restritas a um dos seus crimes menores, o assassínio de 148 xiitas em 1982, uma nota de rodapé na sua sinistra carreira.

Saddam era um amigo tão valorizado por Washington que até foi agraciado com um privilégio apenas concedido a Israel. Em 1987, as suas forças foram autorizadas a atacar impunemente uma unidade naval americana, o USS Stark, matando 37 homens da tripulação (Israel atuara de modo semelhante no seu ataque de 1967 ao USS Liberty). O Irão reconheceu praticamente a sua derrota pouco depois, quando os EUA lançaram a Operação Louva-a-Deus contra navios iranianos e plataformas petrolíferas em águas territoriais iranianas. Essa operação culminou quando o USS Vincennes, sem qualquer ameaça credível, abateu um avião civil iraniano em espaço aéreo iraniano fazendo 290 mortos, e com a subsequente concessão da Medalha da Legião de Mérito ao comandante do Vincennes por “conduta excecionalmente meritória” e por manter um “clima calmo e profissional” durante o período em que o ataque ao avião teve lugar. Comenta o filósofo Thill Raghu, “Só podemos ficar apavorados perante tal demonstração do excecionalismo americano!”

Depois da guerra ter terminado, os EUA continuaram a apoiar Saddam Hussein, o principal inimigo do Irão. O presidente George H.W.Bush convidou mesmo engenheiros nucleares iraquianos para os Estados Unidos para formação avançada em produção de armas, uma ameaça extremamente grave ao Irão. As sanções contra este país intensificaram-se, incluindo as empresas estrangeiras que com ele negociavam, e foram iniciadas ações para o expulsar do sistema financeiro internacional.

Nos anos recentes, a hostilidade estendeu-se à sabotagem, ao assassínio de cientistas nucleares (presumivelmente por Israel), e à ciber-guerra, abertamente proclamada com orgulho. O Pentágono encara a ciber-guerra como um ato de guerra, justificando uma resposta militar, tal como o faz a NATO, que afirmou em setembro de 2014 que os ciber-ataques podem desencadear os mecanismos de defesa coletiva das potências da NATO quando somos nós o alvo, não os autores.

“O principal estado acima da lei”

É justo acrescentar que tem havido quebras neste padrão. O presidente George W.Bush, por exemplo, deu algumas prendas significativas ao Irão quando destruíu os seus maiores inimigos, Saddam Hussein e os talibãs. Colocou mesmo o inimigo iraquiano do Irão sob sua influência após a derrota americana, uma derrota tão séria que levou Washington a abandonar os seus objetivos oficialmente declarados de estabelecer bases militares permanentes (“campos duradoiros ”) e de garantir que as grandes empresas americanas tivessem acesso privilegiado às vastas reservas de petróleo do Iraque.

Será que os dirigentes iranianos tencionam desenvolver hoje armas nucleares? Podemos decidir por nós próprios quão fiáveis são os seus desmentidos, mas que tenham tido tais intenções no passado está fora de questão. Ao fim e ao cabo, isso era abertamente afirmado ao mais alto nível e os jornalistas estrangeiros eram informados que o Irão iria desenvolver armas nucleares “com toda a certeza e mais cedo do que se pensa”. O pai do programa de energia nuclear do Irão e antigo diretor da Organização de Energia Atómica do Irão estava convencido que o plano dos dirigentes “era construir uma bomba nuclear.” A CIA também relatou que não tinha “qualquer dúvida” que o Irão iria desenvolver armas nucleares se os países vizinhos o fizessem (como fizeram).

Tudo isto se passou evidentemente com o Xá, o acima citado “mais alto nível”, e numa altura em que funcionários superiores americanos, como Dick Cheney, Donald Rumsfeld e Henry Kissinger entre outros, o pressionavam para continuar com os seus programas nucleares e pressionavam as universidades para se adaptarem a esses esforços. A minha própria universidade, o MIT, foi assim pressionada para um acordo com o Xá para admissão de estudantes iranianos no programa de engenharia nuclear em troca de bolsas por ele oferecidas, sob fortes objeções do corpo de estudantes, mas com o apoio comparativamente mais forte da faculdade (numa reunião que os mais velhos da faculdade sem dúvida recordam bem).

Inquirido mais tarde porque tinha apoiado tais programas com o Xá e era agora contra eles, Kissinger respondeu honestamente que o Irão era nessa altura um aliado.

Pondo de lado as absurdidades, qual a real ameaça do Irão que inspira tanto medo e tanta fúria? Onde naturalmente devemos procurar uma resposta é, novamente, na espionagem americana. Lembremos a sua análise sobre a ausência de ameaça militar do Irão, sobre a sua doutrina estratégica defensiva e sobre os seus programas nucleares (sem inclusão da produção de bombas, tanto quanto pode ser apurado) serem “um elemento central da sua estratégia de dissuasão.”

Quem então estaria preocupado com um Irão dissuasor? A resposta é simples: os estados-pária que agitam a região e não querem admitir qualquer estorvo ao seu recurso constante à agressão e à violência. À frente, neste campo, estão os Estados Unidos e Israel, com a Arábia Saudita a tentar os possíveis para se juntar ao grupo com a sua invasão do Bahrain (em apoio do esmagamento de um movimento reformador local) e agora com o criminoso ataque ao Iémen, amplificando a crescente catástrofe humanitária nesse país.

Para os Estados Unidos, essa caracterização é habitual. Há quinze anos, o destacado analista político Samuel Huntington, professor de ciência de governo em Harvard, avisou no jornal situacionista Foreign Affairs que para a maior parte do mundo os Estados Unidos se tinham “tornado a potência canalha… a única grande ameaça externa às suas sociedades.” Pouco tempo depois, estas palavras eram repetidas por Robert Jervis, presidente da Associação Americana de Ciência Política: “Aos olhos de grande parte do mundo, o primeiro estado pária hoje é os Estados Unidos.” Como vimos, a opinião global apoia este juízo por grande margem.

Além do mais, o título é exibido com orgulho. É esse o claro sentido da insistência da classe política para que os Estados Unidos se reservem o direito de recorrer à força se unilateralmente achar que o Irão está a violar qualquer compromisso. Esta política vem de longe, especialmente para os liberais democratas e não é exclusiva para o Irão. A doutrina Clinton, por exemplo, confirmou que os EUA se davam o direito de recorrer ao “uso unilateral de poder militar” até para garantir “o acesso sem restrições aos mercados chave, às fontes de energia e aos recursos estratégicos,” para não falar das preocupações com a “segurança” ou “humanitárias.” Várias versões desta doutrina têm sido adotadas que bem a confirmam na prática, tornando desnecessária a sua discussão entre pessoas com vontade de olhar para os factos da história presente.

São estes alguns dos assuntos críticos que deviam ser o foco de atenção ao analisar o acordo nuclear de Viena, quer ele se mantenha, quer seja sabotado pelo Congresso, como bem pode acontecer.

Sobre o autor

Noam Chomsky is institute professor emeritus in the MIT Department of Linguistics and Philosophy.

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