5 de novembro de 2015

Muito fraco, muito forte

Patrick Cockburn sobre o estado da guerra síria

Patrick Cockburn


Vol. 37 No. 21 · 5 November 2015

Tradução / O balanço das relações de poder militar na Síria e no Iraque está mudando. Desde quando os russos iniciaram uma ofensiva de ataques aéreos no final de setembro, a moral do exercito sírio foi reacendida, quando já demonstrava sinais de fraqueza e melancolia. Com o apoio do poder aéreo russo, o exército sírio fechou o cerco numa ofensiva em torno de Aleppo, a segunda maior cidade da Síria, na tentativa de recuperar o território perdido na província de Idlib. Comandantes da infantaria do exército sírio passaram a transmitir coordenadas de 400 a 800 alvos diários a forças russas, sendo que apenas uma pequena proporção destes está sob ataque imediato. As chances de o governo de Bashar al-Assad cair - uma probabilidade mais remota do que muitos sugeriram — estão desaparecendo. Não significa que ele vá ganhar.

Por outro lado, o drama da ação militar russa provocou uma onda retórica à la Guerra Fria pelos líderes ocidentais e os meios de comunicação, distanciando-se dos desdobramentos mais significativos da guerra na Síria e no Iraque. O mesmo equívoco cometido ao longo da campanha aérea norte-americana no último ano — começou no Iraque, em agosto de 2014, para ser estendido mais tarde à Síria – para enfraquecer o Estado Islâmico (ISIS) e outros grupos da Al-Qaeda. Até outubro a coalizão liderada pelos EUA tinha realizado 7.323 ataques aéreos, a grande maioria deles pela força aérea norte-americana, que fez 3.231 ataques no Iraque e 2.487 na Síria. Entretanto, a campanha mostrou-se incapaz de conter o ISIS, que capturou, em maio, Ramadi no Iraque e Palmyra na Síria. Nesse ínterim, houve muito menos ataques contra o ramo sírio da al-Qaeda, Jabhat al-Nusra, e o grupo islâmico extremo Ahrar al-Sham, que dominam a insurgência no norte da Síria. O fracasso dos EUA é tanto político quanto militar: ele precisa de parceiros em terra para lutar contra o ISIS, mas a sua escolha é restrita, pois os grupos realmente engajados no combate contra os jihadistas sunitas são majoritariamente xiitas — o próprio Irã, o exército sírio, o Hezbollah, as milícias xiitas no Iraque. E os EUA não podem oferecer-lhes cooperação militar completa, porque isso iria alienar os estados sunitas — base de poder norte-americano na região. Assim, Washington só pode usar sua força aérea para dar suporte aos curdos.

Agora, os EUA enfrentam o mesmo dilema no Iraque e na Síria que enfrentaram em 11 de setembro, quando George Bush declarou guerra contra o terror. Na época, divulgou-se que 15 dos 19 sequestradores eram sauditas, e que Osama Bin Laden era um saudita que recebia dinheiro para as operações por meio de doadores sauditas. Mas os EUA não queriam perseguir a Al-Qaeda à custa de suas relações com os estados sunitas. Por isso que silenciaram a critica à Arábia Saudita e invadiram o Iraque; da mesma forma nunca lidaram com o apoio que o Paquistão dava ao Talibã, o que abriu margem para que o grupo se reagrupasse depois de perder o força em 2001.

Washington tentou amenizar o fracasso de sua campanha aérea, oficialmente chamada de Operation Inherent Resolve, fazendo afirmações exageradas de sucesso. Ao divulgar os mapas à imprensa demonstrando que o ISIS tinha perdido entre 25% e 30% de seu território, deixava-se de lado as partes da Síria em que o ISIS foi avançando. Tamanha foi a distorção e manipulação da inteligência por parte do US Central Command que em julho mais de cinqüenta analistas assinaram um manifesto contra a distorção oficial que estava ocorrendo no campo de batalha. A Rússia, por sua vez, tirou vantagem do fracasso americano na repressão aos jihadistas.

Todavia, a grande disputa de poder é apenas um dos confrontos que ocorrem na Síria, e a fixação na intervenção russa obscureceu outros acontecimentos importantes. O mundo não tem prestado muita atenção, mas a luta regional entre xiitas e sunitas intensificou-se nos últimos meses. Não há duvidas que os estados xiitas em todo o Oriente Médio, nomeadamente o Irã, o Iraque e o Líbano, estão em uma luta até o fim contra os estados sunitas, liderados pela Arábia Saudita e seus aliados locais na Síria e no Iraque. Líderes xiitas descartam a ideia, muito favorável a Washington, de que uma oposição sunita considerada moderada, não-sectária, estaria disposta a partilhar o poder em Damasco e Bagdá: eles acreditam que se trate de propaganda divulgada pela mídia na Arábia Saudita e Qatar. Quando se trata de manter Assad no comando em Damasco, o crescente envolvimento dos poderes xiitas é tão importante quanto a campanha aérea russa. Pela primeira vez unidades da Guarda Revolucionaria Iraniana foram mobilizadas na Síria, principalmente em torno de Aleppo, e há relatos de que milhares de combatentes do Irã e do Hezbollah estão esperando para atacar pelo norte. Vários comandantes do alto escalão iraniano foram mortos recentemente nos combates. A mobilização do eixo xiita é significativa, porque, embora os sunitas sejam mais numerosos que os xiitas no mundo muçulmano, na faixa dos países diretamente envolvidos no conflito — Irã, Iraque, Síria e Líbano — há mais de 100 milhões de xiitas, que acreditam que a sua própria existência está ameaçada se Assad for derrubado — comparados aos 30 milhões de sunitas, que são maioria apenas na Síria.

In addition to the Russian-American rivalry and the struggle between Shia and Sunni, a third development of growing importance is shaping the war. This is the struggle of the 2.2 million Kurds, 10 per cent of the Syrian population, to create a Kurdish statelet in north-east Syria, which the Kurds call Rojava. Since the withdrawal of the Syrian army from the three Kurdish enclaves in the summer of 2012, the Kurds have been extraordinarily successful militarily and now control an area that stretches for 250 miles between the Euphrates and the Tigris along the southern frontier of Turkey. The Syrian Kurdish leader Salih Muslim told me in September that the Kurdish forces intended to advance west of the Euphrates, seizing the last IS-held border crossing with Turkey at Jarabulus and linking up with the Syrian Kurdish enclave at Afrin. Such an event would be viewed with horror by Turkey, which suddenly finds itself hemmed in by Kurdish forces backed by US airpower along much of its southern frontier.

The Syrian Kurds say that their People’s Protection Units (YPG) number fifty thousand men and women under arms (though in the Middle East it is wise to divide by two all claims of military strength). They are the one force to have repeatedly beaten Islamic State, including in the long battle for Kobani that ended in January. The YPG is lightly armed, but highly effective when co-ordinating its attacks with US aircraft. The Kurds may be exaggerating the strength of their position: Rojava is the safest part of Syria aside from the Mediterranean coast, but this is a measure of the chronic insecurity in the rest of the country, where, even in government-held central Damascus, mortar bombs fired from opposition enclaves explode daily. Front lines are very long and porous, so IS can infiltrate and launch sudden raids. When in September I drove from Kobani to Qamishli, another large Kurdish city, on what was meant to be a safe road, I was stopped in an Arab village where YPG troops said they were conducting a search for five or six IS fighters who had been seen in the area. A few miles further on, in the town of Tal Abyad, which the YPG had captured from IS in June, a woman ran out of her house to wave down the police car I was following to say that she had just seen an IS fighter in black clothes and a beard run through her courtyard. The police said there were still IS men hiding in abandoned Arab houses in the town. Half an hour later, we were passing though Ras al-Ayn, which the Kurds have held for two years, when there was the sound of what I thought was shooting ahead of us, but it turned out to be a suicide bomber in a car: he had blown himself up at the next checkpoint, killing five people. At the same time, a man on a motorbike detonated a bomb at a checkpoint we had just passed through, but killed only himself. The YPG may have driven IS out of these areas, but they have not gone far.

Innumerable victories and defeats on the battlefield in Syria and Iraq have been announced over the last four years, but most of them haven’t been decisive. Between 2011 and 2013 it was conventional wisdom in the West and much of the Middle East that Assad was going to be overthrown just as Gaddafi has been. In late 2013 and throughout 2014, it was clear that Assad still controlled most populated areas, but then the jihadi advances in northern and eastern Syria in May revived talk of the regime’s crumbling. In reality, neither the government nor its opponents are likely to collapse: all sides have many supporters who will fight to the death. It is a genuine civil war: a couple of years ago in Baghdad an Iraqi politician told me that ‘the problem in Iraq is that all parties are both too strong and too weak: too strong to be defeated, but too weak to win.’ The same applies today in Syria. Even if one combatant suffers a temporary defeat, its foreign supporters will prop it up: the ailing non-IS part of the Syrian opposition was rescued by Saudi Arabia, Qatar and Turkey in 2014 and this year Assad is being saved by Russia, Iran and Hizbullah. All have too much to lose: Russia needs success in Syria after twenty years of retreat, while the Shia states dare not allow a Sunni triumph.

The military stalemate will be difficult to break. The battleground is vast, with front lines stretching from Iran to the Mediterranean. Will the entrance of the Russian air force result in a new balance of power in the region? Will it be more effective than the Americans and their allies? For air power to work, even when armed with precision weapons, it needs a well-organised military partner on the ground identifying targets and relaying co-ordinates to the planes overhead. This approach worked for the US when it was supporting the Northern Alliance against the Taliban in Afghanistan in 2001 and the Iraqi peshmerga against Saddam’s army in northern Iraq in 2003. Russia will now hope to have the same success through its co-operation with the Syrian army. There are some signs that this may be happening; on 18 October what appeared to be Russian planes were reported by independent observers to have wiped out a 16-vehicle IS convoy and killed forty fighters near Raqqa, Islamic State’s Syrian capital.

But Russian air support won’t be enough to defeat IS and the other al-Qaida-type groups, because years of fighting the US, Iraqi and Syrian armies has given their fighters formidable military expertise. Tactics include multiple co-ordinated attacks by suicide bombers, sometimes driving armoured trucks that carry several tons of explosives, as well as the mass use of IEDs and booby traps. IS puts emphasis on prolonged training as well as religious teaching; its snipers are famous for remaining still for hours as they search for a target. IS acts like a guerrilla force, relying on surprise and diversionary attacks to keep its enemies guessing.

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Além da rivalidade Rússia-EUA e a luta entre xiitas e sunitas, há uma terceira questão que se desenvolve a passos rápidos no conflito. Estamos falando da luta separatista dos 2,2 milhões de curdos, 10% da população síria, que buscam fundar um pequeno Estado no nordeste da Síria, que os curdos chamam de Curdistão sírio. Desde a retirada do exército sírio de três enclaves, no verão de 2012, os curdos têm sido extraordinariamente bem-sucedidos militarmente. Passaram a controlar uma área que se estende por 400 quilômetros entre os rios Tigre e Eufrates, ao longo da fronteira sul da Turquia. O líder mulçumano curdo-sírio Salih disse-me em setembro que as forças curdas pretendem avançar a oeste do Eufrates, reconquistando a última fronteira mantida pelo ISIS com a Turquia em Jarabulus, para estabelecer a ligação com o território curdo sírio em Afrin. Tal ofensiva é vista com total temor por parte da Turquia, já que de repente ela pode encontrar-se cercada por forças curdas apoiadas pelo poder aéreo dos Estados Unidos ao longo de sua fronteira ao sul.

Os curdos sírios afirmam que suas Unidades Populares de Proteção (YPG) reúnem cerca de 50 mil homens e mulheres (embora no Oriente Médio aconselhe-se dividir pela metade todas as revindicações militares). Eles são a única força que tem afastado rapidamente o ISIS, inclusive na longa batalha de Kobane que terminou em janeiro. O YPG possui armamentos leves, mas são altamente eficazes quando coordenam seus ataques junto com aviões norte-americanos. Os curdos podem estar exagerando na força de sua posição: o Curdistão sírio é a parte mais segura da Síria, na costa do Mediterrâneo, mas a insegurança latente no resto país é tão crônica que morteiros são lançados diariamente pela oposição nas regiões centrais sob o poder do governo, em Damasco.

As linhas de frente são muito longas e têm inúmeras brechas, onde o ISIS infiltra-se e lança ataques repentinos. Quando em setembro viajei de Kobane para Qamishli, outra grande cidade curda, no que a principio parecia ser uma estrada segura, fui parado em uma aldeia árabe onde as tropas do YPG disseram que estavam realizando uma busca de cinco ou seis soldados do ISIS, que tinham sido vistos pela área. Alguns quilômetros mais adiante, na cidade de Tal Abyad, onde o YPG havia capturado agentes do ISIS em junho, uma mulher correu para fora de sua casa acenando para o carro da polícia e dizendo que ela tinha acabado de ver um soldado do ISIS com roupas pretas e barba correndo pelo seu quintal. A polícia disse que ainda há membros do ISIS escondidos em casas de árabes abandonadas na cidade. Meia hora mais tarde, estávamos passando por Ras al-Ayn, território mantido há dois anos pelos curdos, quando ouvi um barulho e pensei que havia disparos a nossa frente. Mas acabou por ser um homem-bomba em um carro: ele tinha explodido a si mesmo próximo a um posto de controle, matando cinco pessoas. Ao mesmo tempo, um homem em uma motocicleta detonou uma bomba em um posto em que haviamos passado minutos antes, matando apenas a si mesmo. O YPG pode ter expulsado o ISIS destas áreas, mas não para muito longe.

Inúmeras vitórias e derrotas no campo de batalha na Síria e no Iraque foram anunciadas ao longo dos últimos quatro anos, mas a maioria delas não foi, em nenhum momento, decisiva. Entre 2011 e 2013 muito se disse no Ocidente, e em grande parte do Oriente Médio, que Assad seguia a mesma trajetória que resultou na queda de Gaddafi [ex-ditador da Líbia]. No final de 2013 e ao longo de 2014, ficou claro que Assad ainda controlava áreas muito povoadas. Mas, em maio deste ano, com os avanços jihadistas no norte e no leste da Síria, restabeleceu-se a propaganda do desmoronamento do regime. Na realidade, nem o governo, nem os seus opositores entrarão em colapso: por todos os lados há adeptos que irão lutar até a morte. É uma verdadeira guerra civil. Há alguns anos atrás, em Bagdá, um político iraquiano disse-me que “o problema no Iraque é que todas as partes são ao mesmo tempo muito fortes e muito fracas: fortes demais para serem derrotadas, mas muito fracas para vencer”. O mesmo se aplica hoje na Síria. Mesmo se um lado sofre uma derrota temporária, seus aliados estrangeiros irão sustentá-lo. O ISIS foi resgatado pela Arábia Saudita, Qatar e Turquia em 2014; este ano, Assad está sendo salvo pela Rússia, Irã e Hezbollah. Todos têm muito a perder: a Rússia precisa de um sucesso na Síria, depois dos vinte anos de retiro. Ao mesmo tempo, os estados xiitas não vão permitir que haja um triunfo sunita.

Vai ser difícil resolver o impasse militar. O campo de batalha é muito grande, com linhas de frente que se estendem desde o Irã até o Mediterrâneo. A entrada da força aérea russa resultará em um novo equilíbrio de poder na região? Será essa força mais eficaz do que os americanos e seus aliados? Para que o poder aéreo seja efetivo, mesmo utilizando misseis de precisão, ele precisa de um parceiro militar altamente organizado em terra para identificação de alvos e afinação das coordenadas para os planos de voo. Esta aproximação funcionou para os EUA quando apoiaram a Aliança do Norte contra os talibãs no Afeganistão em 2001, bem como os peshmergas iraquianos contra o exército de Saddam no norte do Iraque em 2003. A Rússia espera agora ter o mesmo sucesso através de sua cooperação com o exército sírio. Há sinais de que isso pode estar acontecendo.

Mas o apoio aéreo russo não será suficiente para derrotar o ISIS e outros grupos do tipo al-Qaeda, já que anos de luta contra os EUA deram aos terroristas no Iraque e na Síria uma competência militar formidável. Suas táticas incluem múltiplos ataques coordenados por terroristas suicidas, às vezes dirigindo caminhões blindados que carregam várias toneladas de explosivos, bem como o uso de massa de IEDs [minas caseiras] e outras armadilhas. O ISIS dá ênfase ao treinamento prolongado, bem como ao ensino religioso. Seus atiradores de elite são famosos por permanecer imóvel por horas em busca de um alvo. Além disso, o ISIS age como uma força de guerrilha, contando com ataques-surpresas e diversificando ataques para manter seus inimigos perdidos.

***

Nos últimos três anos, descobri que a melhor maneira de compreender o que está realmente acontecendo na guerra é visitar os hospitais militares. A maioria dos soldados feridos, testemunhas oculares da luta, demonstra tédio por suas convalescências e ânsia para falar sobre as suas experiências. Em julho, eu estava no Hospital de Ensino de Hussein, na cidade sagrada xiita de Karbala, onde uma das alas foi reservada para os combatentes feridos da brigada xiita conhecida como Hashid Shaabi. Muitos tinham respondido a um chamado às armas feito pelo grão-aiatolá Ali Sistani depois do ISIS ter capturado Mosul no ano passado. O coronel Salah Rajab, o vice-comandante do batalhão Habib da brigada Ali Akbar, que estava deitado na cama depois de ter sua perna direita amputada, lutava em Baiji City, uma cidade no Tigre perto da maior refinaria de petróleo do Iraque, havia 16 dias quando um morteiro caiu perto dele, deixando dois dos seus homens mortos e quatro feridos. Quando lhe perguntei quais eram as fraquezas da brigada Hashid, ele disse que estavam entusiasmados, mas mal treinados. Podia falar com alguma autoridade: era um soldado profissional que se demitiu do exército iraquiano em 1999. Queixou-se de que seus homens teriam no máximo uma formação de três meses, quando precisavam de seis meses, já que cometeram erros cruciais, tais como falar demais em seus telefones celulares e rádios, no campo de batalha. O Estado Islâmico monitora todas essas comunicações, e usou informações interceptadas para infligir pesadas perdas. O maior problema para a Hashid, que possui um agrupamento com cerca de cinquenta mil homens, é a falta de comandantes experientes capazes de organizar um ataque sem sofrer baixas importantes.

Omar Abdullah, um jovem de 18 anos que serve a brigada voluntária, estava em outra cama na mesma ala. Ele havia treinado durante 25 dias antes de ir lutar em Baiji, onde seu braço e perna foram quebrados na explosão de uma bomba. Sua história confirma, segundo o coronel Rajab, o entusiasmo de milicianos inexperientes que acarretam pesadas perdas ao caírem em armadilhas do ISIS. Ao chegar em Baiji, Abdullah disse: “nós fomos alvejados por atiradores de elite e entramos em uma casa, em busca de abrigo. Éramos treze, e não percebemos que a casa estava cheia de explosivos”. Os explosivos foram detonados por um agente do ISIS que mantinha vigilância sobre a casa. A explosão matou nove dos milicianos e feriu os quatro restantes. Soldados experientes também têm sido vítimas de armadilhas como esta. Um especialista em desarmamento de bombas na enfermaria me disse que quando foi analisar uma ponte de madeira de aparência suspeita sobre um canal, um de seus homens pisou em uma mina e detonou uma bomba que matou quatro e feriu três da equipe antibomba.

Cada tipo de lesão corporal refletem um tipo de combate predominante. A maior parte dos conflitos ocorre em cidades ou áreas construídas, além de envolver combate do tipo “casa-a-casa”, em que as baixas militares são elevadas. Soldados sírios, curdos e iraquianos relataram terem sido atingidos por atiradores de elites em seus postos de controle ou feridos por minas e armadilhas. Em maio, falei com Javad Judy, um jovem de 18 anos integrante do YPG curdo no hospital Shahid Khavat, na cidade de Qamishli, no nordeste da Síria. Ele havia sido baleado na coluna vertebral, quando seu agrupamento estava patrulhando uma aldeia cristã perto Hasakah, – local controlado pelas milícias do ISIS. “Havíamos nos divididos em três grupos para atacar a aldeia”, disse ele, “quando fomos atingidos por fogo intenso de trás das árvores, vindo de ambos os lados.” O jovem ainda estava traumatizado por descobrir que a parte inferior de seu corpo estava permanentemente paralisada.

Para alguns soldados, as lesões não são a única ameaça à sobrevivência. Em 2012, no hospital militar Mezze, em Damasco, conheci Mohammed Diab, um soldado do exército sírio de 21 anos, que um ano antes, em Aleppo, fora atingido por uma bala que estraçalhou sua perna esquerda. Depois de uma recuperação inicial, ele regressou para sua aldeia natal de Rahiya, na província de Idlib. Foi uma estratégia perigosa, pois a área estava sob o controle da oposição. Ao descobrir que havia um soldado do governo ferido na aldeia, o ISIS fez Diab refém por cinco meses; ainda vendeu sua tala de metal e deu-lhe um pedaço de madeira para amarrar a perna. Finalmente, sua família conseguiu pagar o resgate equivalente a mil dólares, mas sua perna tinha infeccionada e ele teve que voltar ao hospital.

De certo modo, os soldados e combatentes comentaram ter muita sorte: “pelo menos tínhamos um hospital para onde ir”. Milhares de lutadores contra o ISIS foram feridos em Kobane, onde 70% dos edifícios foram destruídos por 700 ataques aéreos norte-americanos. Em Damasco, bairros inteiros mantidos pela oposição foram transformados em ruínas pela artilharia do governo. Desde março de 2011, de acordo com o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, 250.124 sírios foram mortos e estima-se que mais de 2 milhões foram feridos, numa população de 22 milhões. O país está saturado pela violência. Em setembro, fui para a cidade de Tal Tamir próxima a Hasakah City, perto de onde Javad Judy foi baleado. O ISIS havia recuado, mas as pessoas ainda estavam muito aterrorizadas para voltar para suas casas — aquelas que ainda permaneciam em pé. Uma autoridade local disse que estava tentando persuadir os refugiados a voltar. A relutância deles não é surpreendente: na semana anterior, uma mulher árabe, aparentemente grávida, havia sido presa no mercado de Tal Tamir ao falhar em detonar os explosivos atados em seu estômago, embaixo das vestes negras.

A intervenção russa na Síria, o envolvimento do Irã e as potências xiitas, assim como a ascensão dos curdos sírios, ainda não conseguiu alterar o status quo daquele antigo conflito no Iraque e na Síria, embora tenha potencial para fazê-lo. A presença russa tornou menos provável uma intervenção militar turca contra os curdos e o governo de Damasco. Mas os russos, o exército sírio e seus aliados, precisam conseguir uma vitória altamente simbólica — como, por exemplo, capturar metade do território controlado pelos rebeldes em Aleppo — pois são estes que estão transformando o conflito em guerra civil. Assad não quer de jeito nenhum ter seus atiradores de elite como presa fácil numa luta corpo-a-corpo, como as descritas pelos soldados feridos nos hospitais.

Nesse sentido, a campanha aérea da Rússia tem uma vantagem sobre a dos norte-americanos: foi lançada com apoio de um exército regular eficaz. Os EUA nunca se atreveram a atacar o ISIS quando este estava lutando contra o exército sírio, porque Washington não queria ser acusada de manter Assad no poder. A abordagem dos EUA deixou-o sem aliados reais em terra: somente os curdos, cuja eficácia é limitada fora das zonas de maioria curda. A fraqueza da estratégia dos EUA no Iraque e Síria é fingir que exista — ou que possa ser criada — uma "oposição sunita moderada". As denúncias ferozes dos norte-americanos contra a intervenção russa advêm de reconhecerem as vantagens da Rússia, naquilo que os EUA não tiveram capacidade de fazer. Enquanto isso, a Inglaterra cobiça aderir à campanha aérea liderada por Washington, sem perceber que esta já falhou em seu objetivo principal.

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