9 de julho de 2017

As armadilhas do feminismo radical

O combate ao capitalismo continua sendo o único caminho para a plena libertação das mulheres.

Erica West

Jacobin

Membros da Liga de Organização Sindical das Mulheres de Nova York posam com um estandarte convocando para a jornada de oito horas em 1910. Kheel Center / Flickr.

Tradução / Para muitas feministas socialistas, é fácil criticar o feminismo liberal. Muitas de nós chegaram ao socialismo a partir do liberalismo e tiveram uma compreensão clara dos seus limites e falhas.

No entanto, a história e a essência do feminismo radical não é assim tão conhecida. Se o “radical” do feminismo radical sugere uma política que os socialistas poderiam adotar, um olhar mais cuidadoso revela uma ideologia incompatível com o feminismo socialista. Marcado por uma estreita compreensão sobre opressão de gênero e tendo uma estratégia equivocada de mudança, o feminismo radical — em última instância — falha ao não conseguir oferecer às mulheres um caminho para sua libertação.

O feminismo radical surgiu do feminismo da segunda onda na década de 1970, ao lado, mas mutuamente exclusivo, do feminismo socialista e marxista. No entanto, eles compartilham alguns pontos em comuns. Como as feministas socialistas, as feministas radicais problematizam o individualismo do liberalismo e argumentam que as escolhas pessoais e as conquistas individuais não são suficientes para transformar a sociedade. E localizam a opressão das mulheres em um contexto mais amplo e referente à sociedade.

Desde o seu princípio, o feminismo radical elencou como questões essenciais a violência sexual e a violência doméstica, considerando-as fundamentais para sustentar a opressão contra as mulheres. Andrea Dworkin, uma das feministas radicais mais proeminentes da década de 1980, se distinguiu em sua trajetória contra a violência sexual. Em um de seus discursos mais famosos, ela pediu uma trégua de 24 horas durante a qual não haveria um único caso de estupro. Dworkin implorou aos homens na platéia para tentar entender o profundo medo da violência sexual que as mulheres vivem todos os dias.

Esse compromisso de combater a violência sexual — um flagelo que dificulta todos os aspectos da vida das mulheres — é admirável. Assim como a ênfase das feministas radicais na reforma em larga escala ao invés de vitórias parciais.

Mas o modo como as feministas radicais lidaram com a concretização de mudanças é preocupante e sintomática de falhas mais profundas em sua ideologia.

O trabalho anti-pornografia é emblemático. Na década de 1980, muitas feministas radicais trabalharam para proibir a pornografia, observando-a como inerentemente misógina e violenta. Algumas, como Dworkin e Catherine MacKinnon — uma feminista radical acadêmica, advogada e professora — foram ainda mais longe. Aliadas a reacionários cristãos como Edwin Meese, elas pressionaram por uma série de decretos locais para acabar com a pornografia. “Entre os muitos legisladores com quem trabalhamos”, MacKinnon disse entusiasmada em uma edição de 1990 do New York Times, “uma delas é uma política conservadora. Tivemos a honra de trabalhar com ela”.

Alguns aspectos da pornografia são, sem dúvida, desprezíveis, racistas e violentos. Mas a proibição da pornografia faria pouco para abordar as preocupações materiais imediatas das mulheres envolvidas no setor. E não faz sentido se aliar aos conservadores para combater a opressão contra as mulheres. Estas são as mesmas pessoas que querem restringir os direitos reprodutivos das mulheres e tornar ainda pior o já precário Estado de Bem-Estar social.

O trabalho anti-pornografia das feministas radicais lança uma luz aos perigos de identificar erroneamente as raízes da opressão contra as mulheres. Baseando-se na censura, encorajando o aparelho carcerário, fazendo alianças com os inimigos da mudança progressiva — é aí que a análise do feminismo radical nos conduz.

Classe e a origem da opressão contra a mulher


No centro dos erros teóricos do feminismo radical está a concepção de classe.

Para as feministas radicais, as duas classes principais da sociedade não são a classe trabalhadora (que vende sua força de trabalho) e os capitalistas (que os exploram), mas os homens (os opressores) e as mulheres (as oprimidas). Esta é a teoria do patriarcado.

As feministas radicais nem sempre reconhecem o capitalismo, e mesmo quando o fazem, o consideram como uma esfera completamente separada, afastada da opressão feminina. Seu objetivo final é abolir o gênero, que elas consideram inerentemente hierárquico e opressivo em relação às mulheres.

Enquanto as marxistas compartilham dessa antipatia em relação ao patriarcado, nós temos uma concepção diferente da classe e das raízes da opressão das mulheres. Definimos a classe não em gênero, mas em termos econômicos: a classe de uma pessoa é determinada pela relação com os meios de produção e o Estado. Hillary Clinton e Sheryl Sandberg, por exemplo, pertencem a uma classe diferente a de uma estudante de pós-graduação feminina que luta em um sindicato ou a mãe de quatro filhos que trabalha em um restaurante de fast food em troca de salário mínimo.

As socialistas se opõem a todos os comentários machistas lançados contra Clinton, Sandberg e outras mulheres da elite. Mas o fato é que seus interesses como capitalistas e políticas bem colocadas estão fundamentalmente em desacordo com os interesses da grande maioria da sociedade.

Eis um exemplo recente: quando as trabalhadoras de um hotel feminino tentaram se sindicalizar em Cambridge, Massachusetts há alguns anos, elas pediram explicitamente o apoio de Sandberg, afirmando que elas estavam tomando seu conselho de “fazer acontecer”. Sandberg recusou-se a apoiá-las. E não é de admirar. A “irmandade” universal corria contra os interesses concretos do capital. As verdadeiras lealdades de Sandberg vieram à tona, de forma alta e evidente.

Como marxistas, sabemos que o inimigo não é homem, mas a classe capitalista — que é plural nos quesitos de gênero e raça — e a nossa estratégia deve refletir isso. A opressão contra as mulheres não é inata aos seres humanos, mas ocorreu em um momento histórico e político particular, ao lado do desenvolvimento da sociedade de classes e do núcleo familiar.

A opressão contra as mulheres persiste não apenas porque os homens nos odeiam, mas por conta do papel que desempenhamos historicamente no núcleo familiar. Enquanto os homens iam trabalhar todas as manhãs para participar da produção capitalista — fazendo carros na fábrica, escrevendo documentos no escritório — as mulheres estavam tipicamente envolvidas naquilo que é conhecido como reprodução social: a reprodução biológica de novos trabalhadores (ou seja, ter filhos) e a reprodução do dia-a-dia dos trabalhadores — lavar roupa, alimentar a família, preparar os filhos para a escola, e assim por diante.

Mesmo nas últimas décadas, quando as mulheres entram na força de trabalho remunerada em massa, elas ainda tendem a arcar com a “dupla jornada”, realizando a reprodução social em casa ao retornarem do trabalho.

Essas tarefas são vitais para o capitalismo. Os trabalhadores devem ser alimentados, vestidos e preparados todos os dias para que o capitalismo funcione. Mas é do interesse do capitalismo que este trabalho seja feito de graça e na esfera privada.

Como resultado, as feministas socialistas argumentam que a única maneira de libertar as mulheres é acabar com a sociedade de classes, de uma vez por todas.

Ao longo do caminho, existem reformas pelas quais podemos e devemos lutar, como aumentar o salário mínimo, introduzir a licença-maternidade remunerada e implementar a creche universal. Feministas socialistas como Sylvia Federici também defendeu “salários para tarefas domésticas“, a fim de proporcionar às mulheres a independência financeira e reconhecer seu trabalho na esfera doméstica como trabalho. Outros, como Angela Davis, propuseram socializar essas tarefas domésticas para eliminar o ônus desigual e de gênero das mulheres.

Mas nenhuma dessas reformas — e muito menos a derrubada do capitalismo — será conquistada sem movimentos unitários e de massas. E é aí que entra a classe trabalhadora. Devido à sua posição na sociedade, a classe trabalhadora como um todo — em toda sua pluralidade de gênero, raça e gerações — é o agente social que pode lutar para reformar radicalmente o capitalismo — e ir além.

Esse objetivo final inclui a abolição do gênero? Provavelmente! Citando Engels:

“Isso será respondido quando uma nova geração surgir: uma geração de homens que nunca em suas vidas souberam o que é comprar a rendição de uma mulher com dinheiro ou qualquer outro instrumento social de poder; uma geração de mulheres que nunca souberam o que é entregar-se a um homem de qualquer outra forma que não o amor real ou se recusar a se entregar ao seu amante pelo medo das conseqüências econômicas. Quando essas pessoas estiverem no mundo, eles vão se importar muito pouco com o que alguém acha que deveria fazer hoje; eles vão fazer sua própria prática e sua opinião pública correspondente sobre a prática de cada indivíduo — e esse será o fim disso.”

O feminismo radical e suas exclusões


Nos últimos anos, a visão de muitas pessoas sobre o feminismo radical tem sido influenciada por suas opiniões de TERFs, ou feministas radicais trans-excludentes. Nem todas as feministas radicais são TERFs. MacKinnon tem sido uma honesta defensora dos direitos das trans durante décadas, e criticou as TERFs por seu fanatismo. “Qualquer um que se identifica como uma mulher, quer ser uma mulher, se sente como uma mulher, no que me diz respeito, é uma mulher”, disse ela em uma entrevista em 2015.

Mas, embora não seja sinônimo, o feminismo radical contém muitas TERFs em suas fileiras, e suas idéias centrais se prestam a uma exclusão das pessoas trans, especialmente as mulheres trans.

Para muitas feministas radicais, não importa o gênero com que alguém se identifica e se apresenta — só importa o sexo que foi atribuído no nascimento. Se os homens são os opressores e a fonte da opressão contra as mulheres, por consequência esses homens mantêm esse poder de oprimir, mesmo após a transição. A sua socialização como homem, não importa quão pouco vivida ou atormentada pela violência de gênero, os torna agentes da opressão feminina. Assim, muitas feministas radicais proíbem as pessoas trans, e particularmente as mulheres trans, de seus espaços políticos e organizacionais.

Essa exclusão não é apenas uma intolerância — é hipócrita: enquanto as feministas radicais lutam vigorosamente contra a violência sexual, as mulheres trans são as maiores vítimas de violência física e sexual, especialmente as mulheres trans negras.

As TERFs podem argumentar que as mulheres trans não têm o mesmo sistema reprodutivo que as mulheres cis e, portanto, não podem entender as lutas das mulheres em relação ao controle de natalidade e contra a esterilização forçada. Mas, então, o que elas têm a dizer a respeito de solidariedade com as mulheres lésbicas, ou mulheres cis que não podem ou escolhem não ter filhos? Os argumentos que as TERFs apresentam são fracos.

O feminismo radical também se mantém em silêncio sobre a questão do racismo e está imerso em uma estratégia politicamente suspeita de lutar contra isso.

Os homens negros perpetuam o machismo exatamente da mesma forma que os homens brancos. Mas sua experiência de racismo também os vinculam com as mulheres negras em suas comunidades. Como Sharon Smith escreve, “a necessidade de lutar ao lado dos homens na luta contra o racismo ou na luta de classes [fez] as idéias individuais não parecerem atraentes” para mulheres negras.

Na verdade, para muitas mulheres, a luta contra o racismo está intrinsecamente ligada à luta contra o machismo (ambos enraizados no capitalismo).

O coletivo do rio Combahee, um grupo lendário de socialistas feministas negras, incorporou esse entendimento, escrevendo em sua declaração de 1979: “Precisamos articular a verdadeira situação de classe de pessoas que não são apenas trabalhadores sem raça e sem sexo, mas para quem a opressão racial e de gênero são determinantes em suas vidas econômicas”.

As mulheres não podem reduzir suas experiências de opressão apenas ao seu gênero. A maioria de nós são trabalhadoras. Muitas de nós são mães, negras, LGBTs e muito mais. Precisamos entender como todas essas coisas estão unidas para combater a dominação em todas as esferas — e ganhar.

Como lutar contra a opressão contra a mulher


Enquanto as feministas radicais tentam postular a ação individual como uma estratégia política — sendo, para algumas, o objetivo –, as feministas socialistas entendem que a nossa força está em nossa quantidade. A separação entre trabalhadoras e trabalhadores, entre pessoas cis e trans, são prejudiciais para nossos objetivos gerais. Ela apenas nos enfraquece e torna a luta contra o capitalismo mais difícil.

O objetivo das feministas socialistas é construir solidariedade em toda a classe trabalhadora. O nosso futuro é um só e a luta contra a opressão de gênero é inseparável da luta contra a transfobia, o racismo, e o capitalismo de forma mais ampla. Todo e qualquer movimento ou teoria feminista que exclui as pessoas trans, seja de forma implícita ou explícita, intencionalmente induz que a transfobia não é uma questão que deve ser debatida pela esquerda.

Recentemente, um fórum da esquerda gerou polêmica ao incluir um painel que questionava a legitimidade das pessoas trans e sua necessidade de ter cuidado médico. Após muita controvérsia, o painel foi cancelado — de forma correta. Com o movimento trans ganhando fôlego, a esquerda deve ser solidária às pessoas trans e não binárias.

Se por um lado há coisas nas quais podemos encontrar inspiração dentro do Feminismo Radical — por exemplo, a ênfase na luta contra a violência sexual –, sua análise sobre a raiz da opressão contra as mulheres e seus reflexos sobre como podemos nos organizar politicamente são um fracasso.

A raiz da opressão contra a mulher não é o homem, mas a sociedade de classes. Lutar contra o capitalismo continua sendo o único caminho para lutar pela total emancipação da mulher.

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