7 de agosto de 2017

Guardiões da propriedade

Ao longo da história, a direita se preocupou mais com a preservação da propriedade privada do que com a promoção da democracia.

Marshall Steinbaum


O empresário e político alemão Alfred Hugenberg (à esquerda) em dezembro de 1932. Wikimedia Commons

Tradução
/ O novo livro de Daniel Ziblatt, Conservative Parties and the Birth of Democracy não poderia chegar em hora mais adequada, o que explica que tenha recebido muito mais atenção da imprensa popular que a maioria dos trabalhos de ciência política e história acadêmicos.

Para Ziblatt, os partidos políticos conservadores determinam se um estado vive em democracia estável ou não, ou se, diferente disso, a reação dos ideólogos da direita mais linha dura acabará por destruir quaisquer avanços. Ao decidir se aceitam alguma democracia, os "empreendedores políticos" conservadores avaliam se o partido e o controle que tenha sobre a tal democracia estão suficientemente bem organizados para sobreviver e prosperar em ambiente no qual o poder político estenda-se para além das elites do regime anterior.

Para provar esse ponto, Ziblatt compara as experiências britânica e alemã entre o final do século XIX e a II Guerra Mundial. Para ele, o Partido Conservador do Reino Unido tornou-se organização de massa nos anos 1870 e 1880, o que lhe permitiu conter a ameaça que o sindicalismo norte-irlandês impunha a toda a ordem constitucional entre 1910 e 1914. Afinal, a base de massa dos Tories ajudou-os a entrar na ordem política britânica do século XX quando, em 1922, abandonaram a coalizão que apoiava o governo de pós-guerra de Lloyd George, e avançar confiantemente rumo ao futuro como único partido capitalista que fazia frente a um Partido Trabalhista completamente dentro da norma.

Diferente disso, a sucessão de partidos conservadores prussianos e alemães continuamente recaíam na política dos proprietários rurais e da aristocracia. A conhecida "divisão das três classes" que definia a representação na Câmara Baixa da Prússia amplificou muito os interesses da aristocracia na política nacional, apesar dos direitos de voto ostensivamente universais que operavam no nível federal. Quando o partido conservador de antes da guerra perdeu o poder político por conta da I Guerra Mundial, só conseguiu voltar depois de restaurar esses vestígios pré-democráticos, o que sua facção linha dura decidiu fazer em meados dos anos 1920.

Esses casos oferecem instrutivo contraste, e a habilidade do establishment político para conter revoltas de direita com certeza é uma disjunção convincente que se tem de considerar. Mas é preciso avançar com cautela, porque e análise de Ziblatt omite, ou no melhor dos casos trata só superficialmente um ingrediente crucial: a ideologia.

Simplificando, a direita se preocupa mais com a preservação da propriedade privada e o poder que ela detém sobre a política, a economia e a sociedade do que com a democracia. Se podem tem tudo, nesse caso, sim, partidos e políticos conservadores apoiam a democracia e frequentemente conseguem exatamente o que desejem, porque a democracia formal, ela própria já comprovou historicamente que é compatível com um capitalismo antidemocrático que concentra o poder econômico. Mas se os conservadores são forçados a escolher – como foram nos dois contextos, da Grã-Bretanha e da Alemanha –, eles sempre escolhem a propriedade, e sacrificam a democracia. As circunstâncias em que façam essa escolha determinam se manterão ou não a fachada democrática.

Em segundo lugar, o relato que Ziblatt faz das revoltas conservadoras merece análise crítica. Na Grã-Bretanha, começou com a vitória esmagadora da coalizão Liberais-Trabalhistas na eleição geral de 1906 depois de 11 anos de hegemonia da coalizão Conservadores-Sindicalistas. A oposição Tory àquele governo entrará para a história pela irresponsabilidade e precipitação em todos os procedimentos: a Casa dos Lordes derrubou uma lei após a outra, até derrubar o "Orçamento do Povo" de 1909, com o que pôs fim à primeira experiência de imposto progressivo em tempos de paz de toda a história britânica.

Dali em diante, a coalizão Liberais-Trabalhistas dedicou-se a reformar a Constituição, para limitar o poder dos Lords. Depois de duas eleições gerais em torno dessa questão, para as quais precisou do apoio dos Nacionalistas Irlandeses para sobreviver, o governo conseguiu aprovar o Parliament Act of 1911 e assegurou supremacia não contestada para a Casa dos Comuns.

Essa vitória só fez aumentar a ousadia e a disposição da oposição para se servir de meios não democráticos para tomar o poder. Em troca do apoio, os Nacionalistas Irlandeses exigiram a Home Rule – como haviam tido durante décadas ante as repetidas obstruções dos Tories na Casa dos Lords. Quando a câmara alta já não tinha como conter regimentalmente essa demanda, os Tories incendiaram a revolta dos Protestantes do Ulster a ponto de fazer dela uma insurreição violenta.

Ziblatt oferece relato factual desses eventos, mas também confia muito no testemunho que deles ofereceria, adiante, o primeiro-ministro liberal H. H. Asquith. Por exemplo, relata um caso segundo o qual o líder Tory Andrew Bonar Law — que manifestou publicamente apoio às medidas não democráticas para "preservar a União" — teria dito a Asquith [paráfrase] "Não queríamos realmente fazer isso — o senhor compreende que tudo é do jogo político, não é mesmo?"

Bastaria isso para demonstrar que alguma lei assumida e resolutamente democrática controlaria completamente o partido Tory? Ziblatt toma mais ou menos como fato essa declaração citada de segunda mão e acrescenta-lhe dois outros ingredientes. Primeiro, que os Conservadores tinham expectativa razoável de vencer a próxima eleição geral; assim sendo, as provocações figuradas (vez ou outra bem literais) visariam apenas à propaganda. Segundo, oito anos depois, e sob circunstâncias muito diferentes, o mesmo Law liderou a facção Tory que se separou da coalizão de Lloyd George; dali em diante, combateriam contra os Trabalhistas durante os 90 anos seguintes – o que seria prova definitiva de que os Tories aceitariam e apoiariam a democracia.

São traços sugestivos de algum tipo de prova, mas nenhum desses traços se sustenta individualmente. Ziblatt tece tapeçaria intrincada com muito pouca matéria-prima, especialmente se se considera seu argumento de que as decisões dos Tories na construção do partido 30 anos antes teriam supostamente posto em marcha todo o movimento que ele narra.

A I Guerra Mundial pôs fim à revolta política da direita. Só com a guerra já em andamento foi que repentinamente sumiu a ameaça do Sindicalismo do Ulster – pelo menos por algum tempo – e os Tories antes tão intransigentes tornaram-se novamente cooperativos. Por que a guerra aconteceu e por que os Conservadores puseram fim naquele momento àquela sua jogada política temerária são questões que escapam aos objetivos da análise de Ziblatt. Na verdade não há consenso acadêmico sobre esses pontos.

A explicação mais óbvia é provavelmente a mais próxima da verdade: em guerra, o governo liberal finalmente adotou a política exterior dos conservadores, o que ajudou os conservadores a encontrar uma saída para fora do pântano moral e político em que estavam. Isso nos leva de volta à ideologia: se os conservadores estão obtendo o que querem, eles podem viver com a democracia. O combalido e sitiado governo liberal sabia disso, o que ajuda a explicar por que os atores decisivos entre os liberais mais ou menos acolheram com boas-vindas a guerra, quando ela chegou.

Esse relato aponta para uma terceira deficiência na exposição de Ziblatt: ele crê empenhadamente que os líderes do Partido Conservador obravam com a melhor das intenções. Faz uma distinção clara entre as elites conservadoras que buscavam poder por meios democráticos e os ativistas linha-dura que não se sentiam limitados por nenhuma lealdade institucional desse tipo. Mas Law e seus colegas na liderança acolheram e estimularam conscientemente grupos de interesses extremistas, primeiro sob o formato de derradeiros aristocratas ainda dedicados a manter o poder independente da Casa dos Lords, depois sob o formato do sectarismo violento do Ulster Protestante.

As elites conservadoras alemãs da era de Weimar fizeram o mesmo, protegendo grupos de nacionalistas veteranos como os Freikorps e Steel Helmets para que não fossem processados pela prática de violência política, mesmo que o partido se mantivesse publicamente afastado desses grupos e criticasse seus ataques.

O relato que Ziblatt oferece da radicalização dos conservadores alemães começa em 1928 ou pouco antes, quando o magnata da mídia e agitador conservador Alfred Hugenberg lançou movimento para assumir o controle sobre o Partido Nacional do Povo Alemão, então o maior partido conservador alemão. Oficialmente antidemocrático, o DNVP participara de vários gabinetes de centro-direita que efetivamente ratificaram o Tratado de Versailles, suavizando pontos mais duros.

O ataque de Hugenberg foi bem-sucedido porque ele controlava a gaveta do dinheiro do partido e encheu os conselhos locais com ultranacionalistas com poder para definir a lista partidária nas eleições nacionais. Seria como se um híbrido de Roger Ailes e Charles Koch assumisse o controle pessoal do Partido Republicano e mandasse John Boehner para a aposentadoria forçada – e depois, vários anos adiante, pusesse no poder absoluto um demagogo racista.

Aliás, pensando bem, foi basicamente o que aconteceu, e isso explica os elogios de David Frum ao livro de Ziblatt. Falando do passado recente do Partido Republicano, Frum escreveu: "Exatamente como na Alemanha pré-1914, um partido institucionalmente poroso foi rápida e facilmente atacado de fora para dentro." Frum parece esquecer que quem votou nas primárias do Partido Republicano nos EUA e assistia aos comícios do Tea Party há décadas escolheu Trump como seu candidato, e as políticas de encarceramento em massa e crime de desrespeito que os legisladores republicanos e os designadoss judiciais têm adotado com entusiasmo por tanto tempo.

Distinguir entre uma elite política conservadora responsável e uma base nacionalista irresponsável é o que garante a Frum o papel histórico que ele deseja para si. Mas Frum ignora as décadas durante as quais as elites acumularam nacionalismo branco com o qual mantiveram como reféns governos e partidos de centro-esquerda: "Aprovem mais essa concessão [aos conservadores], ou vocês verão os verdadeiros malucos assumirem o poder." Esses malucos foram úteis tropas de choque para episódios de violência de rua que produziram valiosos dividendos políticos, fosse enviando às urnas hordas de eleitores enlouquecidos de fúria, ou atacando diretamente, para miná-los, todos os processos democráticos.

Claro que Ziblatt não escreveu seu livro para dar a Frum e à sua gangue histórica uma carta de alforria que os manteria para sempre fora da cadeia — o livro absolutamente não menciona qualquer evento político contemporâneo, e perde-se muito do livro se o abordarmos exclusivamente à luz da história atual.

Além disso, com todas as falhas que tenha, o relato de Ziblatt é avanço notável à frente de The Economic Origins of Dictatorship and Democracy de Daron Acemoglu e James Robinson, para os quais a ameaça de revolução violenta de baixo para cima teria forçado o ancien regime a aceitar a democracia.

Ziblatt acerta completamente no seu argumento central: Ziblatt obtém seu ponto central absolutamente certo: vítima de uma estratagema antidemocrática após a outra, a esquerda política apoiou de forma mais consistente a democratização do que a direita. A direita - não a esquerda - usa seus privilégios e ameaças de deserção para extrair concessões para detentores de capital, enfraquecendo os sistemas políticos através do uso estratégico do nacionalismo violento atávico.

Isso continua verdadeiro se estamos falando de 1914, 1933 ou 2016 - e o privilégio ideológico dos conservadores, para usar um termo de momento, é a verdadeira trilha que vale a pena ser explorada.

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