30 de novembro de 2017

Do neoliberalismo progressista a Trump - e além

Nancy Fraser

American Affairs


Tradução / Quem fala de "crise" hoje corre o risco de ser repudiado como um pedante, dada a banalização do termo através de conversas informais infindáveis. Mas há um sentido preciso em que nós realmente enfrentamos uma crise hoje. Se caracterizarmos precisamente e identificarmos sua dinâmica distintiva, podemos determinar melhor o que é necessário para resolvê-la. Nesta base, também podemos vislumbrar um caminho que leve além do impasse atual - através do realinhamento político para a transformação social.

À primeira vista, a crise de hoje aparenta ser política. Sua expressão mais espetacular está bem aqui, nos Estados Unidos: Donald Trump – sua eleição, sua presidência e a controvérsia em torno dela. Mas não faltam análogos em outros lugares: o debacle britânico do Brexit; a legitimidade minguante da União Europeia e a desintegração dos partidos socialdemocratas e de centro-direita que a defendiam; a fortuna de partidos racistas e anti-imigrantes em todo o norte e centro-leste da Europa; e o surgimento de forças autoritárias, algumas qualificando-se como proto-fascistas, na América Latina, Ásia e Pacífico. Nossa crise política, se é disso que se trata, não é apenas norte-americana, mas global.

O que torna essa afirmação plausível é que, apesar de suas diferenças, todos esses fenômenos compartilham uma característica comum. Todos envolvem um enfraquecimento dramático, se não um simples colapso, da autoridade das classes políticas e dos partidos políticos estabelecidos. É como se massas de pessoas em todo o mundo deixassem de acreditar no senso comum reinante que sustentava a dominação política nas últimas décadas. É como se tivessem perdido a confiança na boa fé das elites e passassem a procurar novas ideologias, organizações e lideranças. Dada a escala do colapso, é improvável que esta seja uma coincidência. Suponhamos, portanto, que enfrentamos uma crise política global.

Por maior que isso pareça ser, é apenas parte da história. Os fenômenos há pouco evocados constituem a vertente especificamente política de uma crise mais ampla e multifacetada, que também tem outras vertentes – econômica, ecológica e social – as quais, tomadas em conjunto, totalizam uma crise geral. Longe de ser meramente setorial, a crise política não pode ser entendida à parte dos bloqueios a que está respondendo em outras instituições, ostensivamente não políticas. Nos Estados Unidos, esses bloqueios incluem a metástase das finanças; a proliferação de trabalhos precários do setor de serviços (“McJobs”); crescentes dívidas do consumidor para permitir a compra de coisas baratas produzidas em outros lugares; aumentos conjuntos em emissões de carbono, clima extremo e negacionismo quanto à crise climática; encarceramento em massa racializado e violência policial sistêmica; e tensões crescentes na vida familiar e comunitária, em parte graças ao prolongamento das horas de trabalho e à diminuição dos auxílios sociais. Juntas, essas forças têm esmagado nossa ordem social por algum tempo sem produzir um terremoto político. Agora, no entanto, todas as apostas estão encerradas. Na rejeição generalizada de hoje à política, como de costume, uma crise objetiva em todo o sistema encontrou sua voz política subjetiva. A vertente política de nossa crise geral é uma crise de hegemonia.

Donald Trump é o anúncio infantil desta crise hegemônica. Mas não podemos entender sua ascensão, a menos se esclarecermos as condições que a permitiram. E isso significa identificar a visão de mundo que o trumpismo deslocou e traçar o processo pelo qual se desenrolou. As ideias indispensáveis para este propósito vêm de Antonio Gramsci. “Hegemonia” é seu termo para o processo pelo qual uma classe dominante naturaliza sua dominação ao instalar os pressupostos de sua própria visão de mundo como o senso comum da sociedade como um todo. Sua contrapartida organizacional é o “bloco hegemônico”: uma coalizão de forças sociais díspares que a classe dominante reúne e através da qual afirma sua liderança. Se eles esperam desafiar estes arranjos, as classes dominadas devem construir um senso comum novo, mais persuasivo, ou uma “contra-hegemonia” e uma aliança política nova mais poderosa ou um “bloco contra-hegemônico”.

A essas ideias de Gramsci, devemos adicionar mais uma. Todo bloco hegemônico incorpora um conjunto de pressupostos sobre o que é justo e correto e o que não é. Desde pelo menos meados do século XX nos Estados Unidos e na Europa, a hegemonia capitalista foi forjada combinando dois aspectos diferentes do direito e da justiça – um focado na distribuição, o outro no reconhecimento. O aspecto distributivo transmite uma visão sobre como a sociedade deve alocar bens divisíveis, especialmente a renda. Este aspecto fala sobre a estrutura econômica da sociedade e, ainda que obliquamente, para suas divisões de classe. O aspecto do reconhecimento expressa a sensação de como a sociedade deve consagrar o respeito e a estima, as marcas morais de associação e pertencimento. Focada na ordem de status da sociedade, este aspecto se refere às suas hierarquias de status.

Juntos, a distribuição e o reconhecimento constituem os componentes normativos essenciais dos quais as hegemonias são construídas. Colocando esta ideia junto com a de Gramsci, podemos dizer que o que possibilitou Trump e o trumpismo foi a dissolução de um bloco hegemônico anterior – e o descrédito de seu nexo normativo distintivo de distribuição e reconhecimento. Ao analisar a construção e a dissolução desse nexo, podemos esclarecer não só o trumpismo, mas também as perspectivas, após Trump, para um bloco contra-hegemônico que poderia resolver a crise. Deixe-me explicar.

A hegemonia do neoliberalismo progressista

Antes de Trump, o bloco hegemônico que dominava a política norte-americana era o neoliberalismo progressista. Isso pode soar como um oxímoro, mas era uma aliança real e poderosa de dois companheiros de cama improváveis: por um lado, as correntes liberais mainstream dos novos movimentos sociais (feminismo, anti-racismo, multiculturalismo, ambientalismo e direitos LGBTQ); por outro lado, os setores “simbólicos” e financeiros mais dinâmicos da economia dos EUA (Wall Street, Silicon Valley e Hollywood). O que manteve esse estranho casal junto foi uma combinação distinta de pontos de vista sobre a distribuição e o reconhecimento.

O bloco progressista-neoliberal combinou um programa econômico expropriativo e plutocrático com uma política de reconhecimento liberal-meritocrática. O componente distributivo desta amálgama era neoliberal. Determinadas a eliminar as forças do mercado da mão pesada do Estado e da pedra de moinho dos “impostos e gastos”, as classes que lideraram esse bloco visavam liberalizar e globalizar a economia capitalista. O que isso significava, na realidade, era a financeirização: o desmantelamento de barreiras e proteções da livre circulação de capitais; a desregulamentação bancária e a expansão da dívida predatória; a desindustrialização, o enfraquecimento dos sindicatos e a disseminação do trabalho precário e mal remunerado. Popularmente associado a Ronald Reagan, mas substancialmente implementado e consolidado por Bill Clinton, essas políticas esvaziaram o padrão de vida da classe trabalhadora e da classe média, ao mesmo tempo em que transferiram riqueza e valor para cima – principalmente, para o 1%, é claro, mas também para os níveis superiores das classes profissionais-gerenciais.

Os progressistas neoliberais não inventaram esta economia política. Essa honra pertence à direita: aos seus astros intelectuais Friedrich Hayek, Milton Friedman e James Buchanan; aos seus políticos visionários, Barry Goldwater e Ronald Reagan; e aos seus habilitadores, Charles e David Koch, entre outros. Mas a versão “fundamentalista” de direita do neoliberalismo não poderia tornar-se hegemônica em um país cujo senso comum ainda era moldado pelo pensamento do New Deal, pela “revolução dos direitos” e uma série de movimentos sociais que descendiam da Nova Esquerda. Para que o projeto neoliberal triunfasse, teve que ser reembalado, dado um apelo mais amplo, conectado a outras aspirações, não econômicas, para a emancipação. Somente quando planejado como progressivo, uma economia política profundamente regressiva poderia se tornar o centro dinâmico de um novo bloco hegemônico.

Foi deixado, portanto, aos “Novos Democratas” para contribuir com o ingrediente essencial: uma política progressista de reconhecimento. Com base nas forças progressistas da sociedade civil, eles difundiram um ethos de reconhecimento que era superficialmente igualitário e emancipatório. No núcleo desse ethos, havia ideais de “diversidade”, “empoderamento das mulheres” e direitos LGBTQ; pós-racismo, multiculturalismo e ambientalismo. Esses ideais foram interpretados de forma específica e limitada, que era totalmente compatível com a “Goldman Sachsificação” da economia dos EUA. Proteger o meio ambiente significava comércio de carbono. Promover a propriedade da casa significava que os empréstimos subprime fossem agrupados e revendidos como títulos garantidos por hipotecas. A igualdade significava meritocracia.

A redução da igualdade para a meritocracia foi especialmente fatídica. O programa progressista-neoliberal para uma ordem de status justa não visava abolir a hierarquia social, mas “diversificá-la”, “empoderando” mulheres “talentosas”, pessoas de cor e minorias sexuais a subir para o topo. E esse ideal era inerentemente específico de classe: voltado para garantir que indivíduos “merecedores” de “grupos sub-representados” pudessem atingir posições e estar a par com os homens brancos e héteros de sua própria classe. A variante feminista é notável, mas, infelizmente, não é única. Focada em “inclinar-se” e “quebrar o teto de vidro”, suas principais beneficiárias só poderiam ser aquelas que já possuem o capital social, cultural e econômico necessário. Todo o resto ficaria preso no porão.

Distorcida como era, esta política de reconhecimento trabalhou para seduzir grandes correntes de movimentos sociais progressistas para dentro do novo bloco hegemônico. Certamente, nem todas as feministas, anti-racistas, multiculturalistas, e assim por diante, foram conquistados para a progressiva causa neoliberal. Mas aqueles que foram, conscientemente ou não, constituíram o segmento maior e mais visível de seus respectivos movimentos, enquanto aqueles que resistiram estavam confinados às margens. Os progressistas do bloco neoliberal progressivo foram, com certeza, seus parceiros júnior, muito menos poderosos do que seus aliados em Wall Street, Hollywood e Silicon Valley. No entanto, eles contribuíram com algo essencial para esta ligação perigosa: o carisma, um “novo espírito de capitalismo”. Exortando uma aura de emancipação, esse novo “espírito” carregou a atividade econômica neoliberal com um frisson de excitação. Agora associado ao pensamento avançado e libertador, cosmopolita e moralmente avançado, o sombrio de repente tornou-se emocionante. Graças, em grande parte, a este ethos, políticas que fomentaram uma vasta redistribuição ascendente de riqueza e renda adquiriram a pátina da legitimidade.

Para alcançar a hegemonia, no entanto, o emergente bloco neoliberal progressivo teve que derrotar dois rivais diferentes. Primeiro, teve que liquidar os restos não insubstanciais da coalizão do New Deal. Antecipando o “New Labour” de Tony Blair, a ala Clinton do Partido Democrata desarticulou discretamente essa aliança mais antiga. Em lugar de um bloco histórico que havia com êxito unido o trabalho organizado, os imigrantes, os afro-americanos, as classes médias urbanas e algumas frações do grande capital industrial por várias décadas, forjou-se uma nova aliança de empresários, banqueiros, suburbanos, “trabalhadores simbólicos”, novos movimentos sociais, latinos e jovens, mantendo o apoio dos afro-americanos, que sentiram que não tinham para onde ir. Fazendo campanha para a indicação presidencial democrata em 1991/92, Bill Clinton ganhou o dia conversando sobre diversidade, multiculturalismo e direitos das mulheres, mesmo enquanto se preparava para andar pelo caminho de Goldman Sachs.

A derrota do neoliberalismo reacionário

O neoliberalismo progressista também teve que derrotar um segundo concorrente, com o qual compartilhou mais do que o permitido. O antagonista neste caso era o neoliberalismo reacionário. Alojado principalmente no Partido Republicano e menos coerente do que seu rival dominante, este segundo bloco ofereceu um nexo diferente de distribuição e reconhecimento. Combinou uma política de distribuição neoliberal semelhante, com uma política de reconhecimento reacionária diferente. Ao mesmo tempo que reivindicava o fomento de pequenas empresas e manufaturas, o verdadeiro projeto econômico do neoliberalismo reacionário centrava no fortalecimento das finanças, produção militar e energia extrativa, tudo para o benefício principal do 1% global. O que deveria tornar isso palatável para a base que procurava reunir era uma visão de exclusão de uma ordem de status justa: étnico-nacional, anti-imigrante e pró-cristã, se não abertamente racista, patriarcal e homofóbica.

Esta foi a fórmula que permitiu que evangélicos cristãos, brancos do sul, americanos rurais e de pequenas cidades, e estratos da classe trabalhadora branca descontentes coexistirem por algumas décadas, por mais que desconfortável, com libertários, Tea Partiers, Câmara de Comércio e os irmãos Koch, além de um número impressionante de banqueiros, magnatas imobiliários, magnatas da energia, capitalistas de risco e especuladores de fundos de cobertura. As ênfases setoriais de lado, nas grandes questões da economia política, o neoliberalismo reacionário não diferiu substancialmente de seu rival progressista-neoliberal. Reconhecidas, as duas partes argumentaram algo sobre “impostos sobre os ricos”, com os democratas geralmente se escondendo. Mas ambos os blocos apoiaram o “livre comércio”, os baixos impostos corporativos, os direitos trabalhistas reduzidos, o primado do interesse dos acionistas, a remuneração dos vencedores e a desregulamentação financeira. Ambos os blocos elegeram líderes que procuraram “grandes pechinchas” destinadas a reduzir os direitos. As principais diferenças entre eles ativaram o reconhecimento, não a distribuição.

O neoliberalismo progressista ganhou essa batalha também, mas a um custo. Os centros industriais em decadência, especialmente o chamado Rust Belt, foram sacrificados. Essa região, junto com os novos centros industriais do Sul, teve um grande sucesso graças a uma tríade de políticas de Bill Clinton: a NAFTA, a adesão da China à OMC (justificada, em parte, como uma promoção da democracia) e a revogação da Glass-Steagall. Juntas, essas políticas e suas sucessoras derrubaram comunidades que haviam baseado-se na manufatura. No decorrer de duas décadas de hegemonia neoliberal progressista, nenhum dos dois principais blocos fez qualquer esforço sério para apoiar essas comunidades. Para os neoliberais, suas economias não eram competitivas e deveriam estar sujeitas à “correção do mercado”. Para os progressistas, suas culturas estavam presas no passado, vinculadas a valores paroquiais obsoletos que logo desapareceriam em uma nova repartição cosmopolita. Em nenhum terreno – distribuição ou reconhecimento – os neoliberais progressivos poderiam encontrar algum motivo para defender o Rust Belt e as comunidades industriais do sul.

O "vácuo" hegemônico - e a luta para preenchê-lo

O universo político que Trump levantou era altamente restritivo. Foi construído em torno da oposição entre duas versões do neoliberalismo, distinguindo-se principalmente no eixo do reconhecimento. Reconhecido, alguém poderia escolher entre multiculturalismo e etnonacionalismo. Mas alguém estaria preso, de qualquer forma, com a financiarização e a desindustrialização. Com o menu limitado entre neoliberalismo progressista e reacionário, não havia força para se opor à diminuição dos padrões de vida da classe trabalhadora e da classe média. Os projetos anti-neoliberais foram severamente marginalizados, senão simplesmente excluídos, da esfera pública.

Isso deixou um segmento considerável do eleitorado dos EUA, vítimas da financiarização e globalização corporativa, sem uma casa política natural. Dado que nenhum dos dois principais blocos falou por eles, foi criado um “vácuo” no universo político americano: uma zona vazia e desocupada, onde as políticas anti-neoliberais e pró-trabalhadoras poderiam ter se enraizado. Dado o ritmo acelerado da desindustrialização, a proliferação do precariado e de baixos McSalários, o aumento da dívida predatória, e o consequente declínio dos padrões de vida para os dois terços mais pobres dos americanos, era apenas uma questão de tempo antes de alguém prosseguir para ocupar esse espaço vazio e preencher a lacuna.

Alguns assumiram que esse momento havia chegado em 2007/8. Um mundo que ainda se afastava de um dos piores desastres da política externa na história dos EUA foi então forçado a enfrentar a pior crise financeira desde a Grande Depressão – e uma colapso próximo da economia global. A política como de costume caiu no caminho. Um afro-americano que falou de “esperança” e “mudança” ascendeu à presidência, prometendo transformar não apenas a política, mas a “mentalidade” da política americana. Barack Obama poderia ter aproveitado a oportunidade para mobilizar o apoio de massa para uma grande mudança do neoliberalismo, mesmo diante da oposição do Congresso. Em vez disso, ele confiou a economia às próprias forças de Wall Street que quase a destruíram. Definindo o seu objetivo como “recuperação” em oposição à reforma estrutural, Obama esbanjou enormes resgates de caixa nos bancos que eram “muito grandes para falir”, mas não fez nada remotamente comparável para suas vítimas: os dez milhões de americanos que perderam suas casas para encerramento durante a crise. A única exceção foi a expansão do Medicaid através do Affordable Care Act, que proporcionou um benefício material real para uma parcela da classe trabalhadora dos EUA. Mas essa foi a exceção que provou a regra. Ao contrário das propostas de opções de pagador único e público que Obama renunciou mesmo antes que as negociações sobre assistência médica começassem, sua abordagem reforçava as próprias divisões dentro da classe trabalhadora que acabariam eventualmente por ser tão politicamente fatídicas. Tudo isso dito, o impulso esmagador de sua presidência era manter o status quo neoliberal progressista apesar de sua crescente impopularidade.

Outra chance de preencher a lacuna hegemônica chegou em 2011, com a erupção do Occupy Wall Street. Cansado de aguardar a reparação do sistema político e resolvendo tomar as questões em suas próprias mãos, um segmento da sociedade civil ocupou praças públicas em todo o país em nome dos “99%”. Denunciando um sistema que saqueou a grande maioria para enriquecer o “1%”, grupos relativamente pequenos de manifestantes jovens logo atraíram um amplo apoio – até 60% do povo americano, de acordo com algumas pesquisas – especialmente de sindicatos assediados, estudantes endividados, famílias de classe média em dificuldades e o crescente “precariado”.

Os efeitos políticos do Occupy foram contidos, no entanto, servindo principalmente para reeleger Obama. Foi ao adotar a retórica do movimento que ele conquistou o apoio de muitos que passariam a votar em Trump em 2016 e, assim, derrotou Romney em 2012. Depois de ganhar mais quatro anos, entretanto, a recente consciência de classe do presidente rapidamente evaporou. Confinando a busca pela “mudança” à emissão de ordens executivas, ele nem processou os malfeitores da riqueza, nem usou o púlpito valente para reunir o povo americano contra Wall Street. Supondo que a tempestade havia passado, as classes políticas dos EUA mal perderam o ritmo. Continuando a defender o consenso neoliberal, eles não conseguiram ver no Ocuppy os primeiros rumores de um terremoto por vir.

Esse terremoto finalmente bateu em 2015/16, enquanto o crescente descontentamento de repente se transformou em uma crise de autoridade política. Naquela temporada eleitoral, os dois principais blocos políticos pareciam estar em colapso. Do lado republicano, Trump, fazendo campanha sobre temas populistas, derrotou com facilidade (como ele continua a nos lembrar) seus infelizes dezesseis principais rivais, incluindo vários escolhidos a dedo pelos chefes do partido e grandes doadores. Do lado democrático, Bernie Sanders, um autoproclamado socialista democrático, montou um desafio surpreendentemente sério para a sucessora ungida de Obama, que teve que implementar todos os truques e alavancas do poder do partido para detê-lo. Em ambos os lados, os scripts usuais foram suspensos quando um par de outsiders ocupou o vácuo hegemônico e começou a preenchê-lo com novos memes políticos.

Tanto Sanders quanto Trump derrotaram a política neoliberal de distribuição. Mas sua política de reconhecimento diferia-se drasticamente. Enquanto Sanders denunciou a “economia manipulada” em acentos universalistas e igualitários, Trump tomou emprestada a mesma frase, mas coloriu-a de nacionalismo e protecionismo. Duplicando os tropos exclusivos de longa data, ele transformou o que tinham sido “meros” assobios de cães em explosões de racismo, misoginia, islamofobia, homo e transfobia, e sentimento anti-imigrante. A base da “classe trabalhadora” que sua retórica conjurava era branca, heterossexual, masculina e cristã, baseada na mineração, perfuração, construção e indústria pesada. Em contrapartida, a classe trabalhadora que Sanders cortejava era ampla e expansiva, englobando não apenas os trabalhadores das fábricas da Rust Belt, mas também os trabalhadores do setor público e de serviços, incluindo mulheres, imigrantes e pessoas de cor.

Certamente, o contraste entre estes dois retratos da “classe trabalhadora” era em grande parte retórico. Nenhum retrato correspondia estritamente à base de eleitores do campeão. Embora a margem de vitória de Trump tenha vindo de centros de fabricação eviscerados que foram para Obama em 2012 e para Sanders nas primárias democratas de 2015, seus eleitores também incluíram os suspeitos republicanos usuais – incluindo libertários, donos de empresas e outros pouco afeitos ao populismo econômico. Da mesma forma, os eleitores mais confiáveis de Sanders eram jovens, americanos com formação universitária. Mas esta não é a questão. Com uma projeção retórica de uma possível contra-hegemonia, foi a visão expansiva de Sanders da classe trabalhadora dos EUA que distinguiu mais fortemente sua marca de populismo da de Trump.

Ambos outsiders, esboçaram os contornos de um novo senso comum, mas cada um deles o fez à sua maneira. Na melhor das hipóteses, a retórica da campanha de Trump sugeriu um novo bloco proto-hegemônico, que podemos chamar populismo reacionário. Parecia combinar uma política de reconhecimento hiper-reacionária com uma política populista de distribuição: na verdade, o muro na fronteira mexicana somada aos gastos de infraestrutura em larga escala. O bloco que Sanders imaginava, ao contrário, era o populismo progressista. Ele procurou se juntar a uma política inclusiva de reconhecimento com uma política pró-família trabalhadora de distribuição: reforma da justiça criminal somada ao Medicare para todos; justiça reprodutiva somada à taxa de matrícula gratuita da faculdade; direitos LGBTQ somado à quebra de grandes bancos.

Iscar-e-trocar

Nenhum desses cenários realmente se materializou, no entanto. A perda de Sanders para Hillary Clinton eliminou a opção progressista-populista da votação, para a surpresa de ninguém. Mas o resultado da vitória subsequente de Trump sobre ela foi mais inesperado, pelo menos para alguns. Longe de governar como um populista reacionário, o novo presidente ativou o velho “iscar-e-trocar”, abandonando as políticas distributivas populistas que sua campanha havia prometido. Reconhecido, ele cancelou a Parceria Trans-Pacífico. Mas ele temporizou no NAFTA e não conseguiu levantar um dedo para controlar Wall Street. Trump também não tomou um único passo sério para implementar projetos de infraestrutura pública de grande escala, de criação empregos; seus esforços para incentivar a indústria foram confinados ao invés disso em exibições simbólicas de mitigação e alívio regulatório para o carvão, cujos ganhos provaram ser bastante fictícios. E longe de propor uma reforma do código tributário, cujos beneficiários principais seriam as famílias da classe trabalhadora e da classe média, ele assinou a versão republicana da mesma política tributária de sempre, projetada para canalizar mais riqueza para o 1% (incluindo a família Trump). Como este último ponto atesta, as ações do presidente na frente distributiva incluíram uma dose pesada de capitalismo de “amiguismo” e auto-negociação. Mas se o próprio Trump ficou sem os ideais Hayekianos de razão econômica, a nomeação de mais um aluno de Goldman Sachs para o Tesouro garante que o neoliberalismo continuará onde é importante.

Tendo abandonado a política populista de distribuição, Trump passou a dobrar a política reacionária de reconhecimento, enormemente intensificada e cada vez mais viciosa. A lista de suas provocações e ações em apoio a hierarquias de status são longas e arrepiantes: a proibição de viagem em suas várias versões, todas visando países de maioria muçulmana, mal disfarçada pela cínica adição tardia da Venezuela; o esvaziamento dos direitos civis na Justiça (que abandonou o uso de decretos de consentimento) e no Trabalho (o que impediu a discriminação policial por contratantes federais); a recusa de defender processos judiciais sobre direitos LGBTQ; a reversão do seguro de cobertura obrigatório de contracepção; a retração das proteções do Título IX para mulheres e meninas através de cortes no quadro de funcionários de execução; pronunciamentos públicos em apoio à endurecer o tratamento policial de suspeitos, ao desprezo do “Sheriff Joe’s” pelo estado de direito e das “pessoas de bem” entre os supremacistas brancos em Charlottesville. O resultado não é uma simples variedade do conservadorismo republicano, mas uma política de reconhecimento hiper-reacionária.

Juntas, as políticas do presidente Trump divergiram das promessas de campanha do candidato Trump. Não só o seu populismo econômico desapareceu, mas seu bode expiatório tornou-se cada vez mais vicioso. O que seus seguidores votaram, em suma, não corresponde ao que eles obtiveram. O resultado não é o populismo reacionário, mas o neoliberalismo hiper-reacionário.

O neoliberalismo hiper-reacionário de Trump não constitui um novo bloco hegemônico, no entanto. É, pelo contrário, caótico, instável e frágil. Isso se deve em parte à psicologia pessoal peculiar do seu portador, e em parte devido à sua dependência disfuncional com o establishment do Partido Republicano, que tentou e falhou em reafirmar seu controle e agora está aguardando sua hora enquanto procura uma saída estratégia. Não podemos saber exatamente como isso vai acontecer, mas seria uma tolice descartar a possibilidade de que o Partido Republicano irá cindir. De qualquer forma, o neoliberalismo hiper-reacionário não oferece perspectivas de hegemonia segura.

Mas também há um problema mais profundo. Ao encerrar a face econômico-populista de sua campanha, o neoliberalismo hiper-reacionário de Trump efetivamente procura restabelecer a lacuna hegemônica que ele ajudou a explodir em 2016. Mas agora ele não pode suturar essa lacuna. Agora que o gato populista está fora da bolsa, é duvidoso que a parcela da classe trabalhadora da base de Trump ficará satisfeita em jantar por muito tempo no (des)reconhecimento sozinha.

Enquanto isso, do outro lado, “a resistência” se organiza. Mas a oposição é fraturada, compreendendo Clintonites duradouros, Sanderistas comprometidos e muitas pessoas que poderiam ir por ambos os lados. Para complicar, a paisagem é uma jangada de grupos ascendentes cujas posturas militantes atraíram grandes doadores, apesar (ou por causa) da imprecisão de suas concepções programáticas.

Especialmente preocupante é o ressurgimento de uma tendência antiga na esquerda para fazer competir a raça contra a classe. Alguns resistentes estão propondo reorientar a política do Partido Democrata em torno da oposição à supremacia branca, concentrando os esforços em ganhar o apoio dos negros e latinos. Outros defendem uma estratégia centrada na classe, destinada a recuperar as comunidades brancas da classe trabalhadora que desertaram para Trump. Ambas as visões são problemáticas na medida em que tratam a atenção da classe e da raça como intrinsecamente antitéticas, um jogo de soma zero. Na realidade, ambos os eixos da injustiça podem ser atacados em conjunto, como de fato devem ser. Nenhum deles pode ser superado enquanto o outro floresce.

No contexto de hoje, no entanto, as propostas para colocar em banho-maria as preocupações com as classes representam um risco especial: são susceptíveis de fazer parte dos esforços da ala de Clinton para restaurar o status quo sob uma nova aparência. Nesse caso, o resultado seria uma nova versão do neoliberalismo progressista – que combina o neoliberalismo na frente distributiva com uma política militante anti-racista de reconhecimento. Essa perspectiva deve dar uma pausa às forças anti-Trump. Por um lado, mandará muitos aliados potenciais a correr na direção oposta, validando a narrativa de Trump e reforçando seu apoio. Por outro lado, efetivamente unirá forças com ele na supressão de alternativas ao neoliberalismo – e, portanto, na restauração da lacuna hegemônica. Mas o que acabei de dizer sobre o Trump aplica-se igualmente aqui: o gato populista está fora da bolsa e não vai se afastar silenciosamente. Restabelecer o neoliberalismo progressista, de qualquer forma, significa recriar – de fato, exacerbar – as próprias condições que criaram Trump. E isso significa preparar o terreno para futuros Trumps – cada vez mais viciosos e perigosos.

Sintomas mórbidos e perspectivas contra-hegemônicas

Por todas essas razões, nem um neoliberalismo progressista revivido nem um neoliberalismo hiper-reacionário imobilizado são bons candidatos para uma hegemonia política no futuro próximo. Os laços que uniram cada um desses blocos estão muito desgastados. Além disso, nenhum deles está atualmente em posição de moldar um novo senso comum. Nenhum deles é capaz de oferecer uma imagem autorizada da realidade social, uma narrativa na qual um amplo espectro de atores sociais pode se encontrar. Igualmente importante, nenhuma variante do neoliberalismo pode resolver com êxito os bloqueios do sistema objetivo que estão subjacentes à nossa crise hegemônica. Uma vez que ambas estão na cama com as finanças globais, nenhuma pode desafiar a financeirização, a desindustrialização ou a globalização corporativa. Nenhuma pode compensar o declínio dos padrões de vida ou o aumento da dívida, as mudanças climáticas ou os “déficits de proteção”, ou estresses intoleráveis ​​na vida comunitária. (Re)instalar qualquer um desses blocos no poder é garantir não apenas uma continuação, mas uma intensificação da crise atual.

O que, então, podemos esperar no curto prazo? Na ausência de uma hegemonia segura, enfrentamos um interregno instável e a continuação da crise política. Nessa situação, as palavras de Antonio Gramsci soam verdadeiras: “o velho está morrendo e o novo não pode nascer; neste interregno aparece uma grande variedade de sintomas mórbidos”.

A não ser, é claro, que exista um candidato viável para uma contra-hegemonia. O mais provável é que tal candidato seja uma forma ou outra de populismo. Poderia o populismo ainda ser uma opção possível – se não de imediato, então, a longo prazo? O que fala em favor desta possibilidade é o fato de que entre os defensores de Sanders e os de Trump, algo que se aproxima de uma massa crítica de eleitores dos EUA, rejeitou a política neoliberal de distribuição em 2015/16. A questão ardente é se essa massa pode agora ser unida em um novo bloco contra-hegemônico. Para que isso aconteça, os partidários da classe trabalhadora de Trump e de Sanders teriam que se entender como aliados – vítimas diferentemente situadas de uma única “economia fraudulenta”, que poderiam buscar em conjunto transformar.

O populismo reacionário, mesmo sem Trump, não é uma base provável para tal aliança. Sua política hierárquica e excludente de reconhecimento é um assassino de negócios infalível para os principais setores da classe trabalhadora e média dos EUA, especialmente famílias dependentes dos salários vindos do trabalho de serviço, agricultura, trabalho doméstico e setor público, cujas fileiras incluem um grande número de mulheres, imigrantes e pessoas de cor. Apenas uma política inclusiva de reconhecimento tem uma chance de combater as forças sociais indispensáveis em aliança com outros setores das classes trabalhadora e média, incluindo comunidades historicamente associadas à indústria, mineração e construção.

Isso deixa o populismo progressista como o candidato mais provável para um novo bloco contra-hegemônico. Combinando a redistribuição igualitária com o reconhecimento não-hierárquico, esta opção tem pelo menos uma chance de unir toda a classe trabalhadora. Mais do que isso, poderia posicionar essa classe, entendida de forma ampla, como a força líder em uma aliança que também inclui segmentos substanciais de jovens, a classe média e o estrato profissional-gerencial.

Ao mesmo tempo, há muitas coisas na situação atual que falam contra a possibilidade, num momento breve, de uma aliança entre populistas progressistas e estratos da classe trabalhadora que votaram em Trump nas últimas eleições. A maioria dos obstáculos são as divisões cada vez mais profundas, mesmo os ódios a longo prazo, mas recentemente criados por Trump, que, como David Brooks colocou perceptivamente, tem um “nariz para cada ferida no corpo político” e nenhuma náusea sobre “colocar um pólo vermelho-quente [neles] e rasgá-los”. O resultado é um ambiente tóxico que parece validar a visão, realizada por alguns progressistas, de que todos os eleitores de Trump são “deploráveis “- racistas, misóginos e homofóbicos irremediáveis. Também é reforçada a visão inversa, realizada por muitos populistas reacionários, de que todos os progressistas são moralizadores e elitistas presunçosos incorrigíveis que olham para eles enquanto saboreiam café com leite e ranqueiam dólares.

Uma estratégia de separação

As perspectivas para o populismo progressista nos Estados Unidos hoje dependem de combater com êxito esses dois pontos de vista. O que é necessário é uma estratégia de separação, que visa precipitar duas grandes divisões. Primeiro, mulheres menos privilegiadas, imigrantes e pessoas de cor devem buscar se afastar do feminismo do “Faça Acontecer”[2], dos anti-racistas meritocráticos e anti-homofóbicos, e da diversidade corporativa e do capitalismo verde que sequestraram suas preocupações, aproximando-os de forma consistente com o neoliberalismo. Este é o objetivo de uma recente iniciativa feminista, que procura substituir “Faça Acontecer” por um “feminismo para os 99%”. Outros movimentos emancipatórios deveriam copiar essa estratégia.

Segundo, Rust Belt, sulistas e comunidades da classe trabalhadora rural devem ser persuadidos a abandonar seus atuais aliados cripto-neoliberais. O truque é convencê-los de que as forças que promovem o militarismo, a xenofobia e o etnonacionalismo não podem e não fornecerão os pré-requisitos materiais essenciais para uma boa vida, enquanto que apenas um bloco populista-progressista poderia. Dessa forma, pode-se separar os eleitores de Trump que poderiam e deveriam responder a tal apelo dos racistas de carteirinha e os etnonacionalistas de “alt-right” dos que não são. Dizer que o primeiro supera em número o último por uma ampla margem, não é negar que os movimentos populistas reacionários tenham arrastado pesadamente com uma retórica carregada e tenham encorajado grupos anteriormente marginais a se tornarem verdadeiros supremacistas brancos. Mas refuta a conclusão apressada de que a maioria esmagadora dos eleitores populistas-reacionários são sempre fechados aos apelos em favor de classe trabalhadora expandida como a evocada por Bernie Sanders. Essa visão não é apenas empiricamente errada, mas é contraproducente, improvável que seja auto-realizável.

Deixe-me esclarecer. Não estou sugerindo que um bloco progressista-populista deveria se calar diante das preocupações urgentes sobre racismo, sexismo, homofobia, islamofobia, e transfobia. Pelo contrário, a luta contra todo esse mal deve ser central para um bloco progressista populista. Mas é contraproducente abordá-los através da condescendência moralizadora, ao modo do neoliberalismo progressista. Essa abordagem pressupõe uma visão superficial e inadequada dessas injustiças, exagerando grosseiramente a medida em que o problema está dentro da cabeça das pessoas e perde a profundidade das forças estruturais-institucionais que as sustentam.

O ponto é especialmente claro e importante no caso da raça. A injustiça racial nos Estados Unidos hoje não é, no fundo, uma questão de atitudes degradantes ou de um mau comportamento, embora com certeza existam. O cerne é, em vez disso, os impactos racialmente específicos da desindustrialização e da financeirização no período de hegemonia neoliberal-progressista, como refratado através de longas histórias de opressão sistêmica. Nesse período, os americanos negros e pardos, aos quais há muito tempo se negou crédito, confinados a habitações inferiores e segregadas, e que pagavam pouco para acumular poupança, foram sistematicamente alvo de fornecedores de empréstimos de alto risco e, consequentemente, experimentaram as taxas mais altas de execuções hipotecárias no país. Neste período, também, as cidades e bairros de minorias que haviam sido sistematicamente excluídos de recursos públicos foram bloqueados por fechamentos de plantas em centros industriais em declínio; suas perdas foram reconhecidas não apenas em empregos, mas também em receitas fiscais, o que lhes privou de fundos para escolas, hospitais e manutenção básica de infra-estrutura, levando eventualmente à debacles como Flint – e, em um contexto diferente, o Lower Ninth Ward de New Orleans. Finalmente, os homens negros sujeitos a sentença diferenciada e prisão severa, trabalho forçado e violência socialmente tolerada, inclusive nas mãos da polícia, eram neste período massivamente recrutados em um “complexo industrial prisional”, mantido cheio em função da “guerra às drogas”, que visava a posse de crack e cocaína, e por taxas desproporcionalmente altas de desemprego entre as minorias, todos cortesia de “realizações” legislativas bipartidárias, orquestradas em grande parte por Bill Clinton. É preciso acrescentar que, embora seja inspiradora, a presença de um afro-americano na Casa Branca conseguiu inverter o sentido de alguma dessas tendências?

E como poderia ter conseguido? Os fenômenos levantados mostram a profundidade pela qual o racismo está ancorado na sociedade capitalista contemporânea – e a incapacidade da moralização progressista-neoliberal de abordá-lo. Eles também revelam que as bases estruturais do racismo têm tanto a ver com a classe e a economia política quanto com o status e o (des)reconhecimento. Igualmente importante, eles deixam claro que as forças que estão destruindo as possibilidades de vida de pessoas de cor são parte do mesmo complexo dinâmico que está destruindo as chances de vida dos brancos – mesmo que algumas das especificidades se diferenciem. O efeito é, finalmente, divulgar o inextricável inter-desenvolvimento de raça e classe no capitalismo financeiro contemporâneo.

Um bloco populista-progressista deve tornar essas ideias suas estrelas orientadoras. Renunciando à ênfase que o neoliberalismo progressista dá às atitudes pessoais, deve concentrar seus esforços nas bases estruturais-institucionais da sociedade contemporânea. Especialmente importante, deve destacar as raízes compartilhadas das injustiças de classe e status no capitalismo financeirizado. Concebendo esse sistema como uma totalidade social única e integrada, ele deve vincular os danos sofridos pelas mulheres, imigrantes, pessoas de cor e pessoas LGBTQ àqueles vivenciados por estratos da classe trabalhadora agora atraídos para o populismo de direita. Desta forma, pode lançar as bases para uma nova e poderosa coalizão entre todos aqueles que Trump e seus homólogos em outros lugares estão agora traindo – não apenas os imigrantes, feministas e pessoas de cor que já se opõem ao seu neoliberalismo hiper-reacionário, mas também estrato branco da classe trabalhadora que até agora o apoiaram. Reunindo grandes segmentos de toda a classe trabalhadora, essa estratégia poderia concebivelmente ganhar. Ao contrário de qualquer outra opção considerada aqui, o populismo progressista tem o potencial, pelo menos em princípio, para se tornar um bloco contra-hegemônico relativamente estável no futuro.

Mas o que recomenda o populismo progressista não é apenas a sua potencial viabilidade subjetiva. Em contraste com os seus prováveis rivais, tem a vantagem ulterior de ser capaz, pelo menos em princípio, de abordar o lado real e objetivo de nossa crise. Deixe-me explicar.

Como observei desde o princípio, a crise hegemônica dissecada aqui é uma vertente de um complexo de crise maior, que engloba várias outras vertentes – ecológica, econômica e social. É também a contrapartida subjetiva de uma crise objetiva do sistema, em relação a qual constitui a resposta e a partir da qual não pode ser separada. Em última análise, esses dois lados da crise – um subjetivo, o outro objetivo – permanecem de pé ou caem juntos. Nenhuma resposta subjetiva, por mais aparentemente convincente que seja, pode garantir uma contra-hegemonia durável, a menos que ofereça uma perspectiva de solução real para os problemas objetivos subjacentes.

O lado objetivo da crise não é uma mera multiplicidade de disfunções separadas. Longe de formar uma pluralidade dispersa, suas várias vertentes estão interligadas e compartilham uma fonte comum. O objeto subjacente de nossa crise geral, aquilo que abriga suas múltiplas instabilidades, é a forma atual do capitalismo – globalizante, neoliberal, financeirizado. Como toda forma de capitalismo, este não é um mero sistema econômico, mas algo maior, uma ordem social institucionalizada. Como tal, abrange um conjunto de condições de fundo não-econômicas que são indispensáveis ​​para uma economia capitalista: por exemplo, atividades não remuneradas de reprodução social, que garantem o fornecimento de mão-de-obra assalariada para a produção econômica; um aparelho organizado de poder público (lei, polícia, agências reguladoras e capacidades de direção) que fornece a ordem, a previsibilidade e a infraestrutura necessárias para a acumulação sustentada; e, finalmente, uma organização relativamente sustentável da nossa interação metabólica com o resto da natureza, que assegura os suprimentos essenciais de energia e matérias-primas para a produção de mercadorias, para não mencionar um planeta habitável que possa suportar a vida.

O capitalismo financeirizado representa uma maneira historicamente específica de organizar a relação de uma economia capitalista com essas condições de fundo indispensáveis. É uma forma de organização social profundamente predatória e instável, que libera a acumulação de capital das próprias restrições (políticas, ecológicas, sociais, morais) necessárias para sustentá-la ao longo do tempo. Libertada de tais restrições, a economia capitalista consome suas próprias condições de fundo de possibilidade. É como um tigre que come sua própria cauda. Como a vida social como tal é cada vez mais econômica, a busca irrestrita do lucro desestabiliza as próprias formas de reprodução social, sustentabilidade ecológica e poder público de que depende. Visto desta forma, o capitalismo financeirizado é uma formação social inerentemente propensa a crises. A complexidade da crise que encontramos hoje é a expressão cada vez mais aguda da sua tendência interna de auto-desestabilização.

Essa é a face objetiva da crise: a contrapartida estrutural ao desmantelamento hegemônico dissecado aqui. Hoje, portanto, ambos os pólos da crise – um objetivo, o outro subjetivo – estão em pleno florescimento. E, como já observamos, eles permanecem de pé ou caem juntos. Resolver a crise objetiva exige uma grande transformação estrutural do capitalismo financeirizado: uma nova maneira de relacionar a economia com a política, a produção com a reprodução, a sociedade humana com a natureza não-humana. O neoliberalismo sob qualquer forma não é a solução, mas o problema.

O tipo de mudança que precisamos só pode vir de outro lugar, de um projeto que seja pelo menos anti-neoliberal, senão anticapitalista. Esse projeto pode se tornar uma força histórica somente quando incorporado em um bloco contra-hegemônico. Embora a perspectiva possa parecer ainda distante, nossa melhor chance de uma resolução subjetiva e objetiva é o populismo progressista. Mas mesmo isso pode não ser um ponto final estável. O populismo progressista pode acabar sendo de transição – uma via de passagem para uma nova forma de sociedade pós-capitalista.

Seja qual for a nossa incerteza quanto ao ponto final, uma coisa é clara. Se não conseguimos perseguir essa opção agora, prolongaremos o presente interregno. E isso significa condenar trabalhadores de todas as crenças e de todas as cores ao aumento do estresse e à diminuição da saúde, ao aumento da dívida e ao excesso de trabalho, ao apartheid das classes e à insegurança social. Significa submergi-los, também, em uma extensão cada vez maior de sintomas mórbidos – em ódios nascidos de ressentimento e expressos em bode expiatório, em surtos de violência seguidos por ataques de repressão, em um mundo vicioso de cachorro-come-cachorro onde as solidariedades se contraem para um ponto de fuga. Para evitar esse destino, devemos romper definitivamente com a economia neoliberal e com as diversas políticas de reconhecimento que ultimamente o apoiaram – eliminando não apenas o etnonacionalismo excludente, mas também o individualismo liberal-meritocrático. Somente juntando uma política de distribuição fortemente igualitária a uma política de reconhecimento substancialmente inclusiva e sensível às classes, podemos construir um bloco contra-hegemônico que possa nos levar além da crise atual para um mundo melhor.

Sobre a autora

Nancy Fraser é professora de filosofia e política na New School for Social Research. Seu livro mais recente é Fortunes of Feminism: From State-Managed Capitalism to Neoliberal Crisis (Verso, 2013).

27 de novembro de 2017

O argumento para não nascermos

O filósofo anti-natalista David Benatar argumenta que seria melhor se ninguém mais tivesse filhos.

Joshua Rothman


Filósofos antinatalistas afirmam que a vida é tão dolorosa que os humanos não deveriam se reproduzir. Fotografia da ESA / eyevine / Redux

Tradução / David Benatar deve ser o filósofo mais pessimista do mundo. Como “anti-natalista”, ele acredita que a vida é tão ruim e tão dolorosa que os humanos fariam melhor em deixar de ter filhos por motivos de compaixão. “Embora boas pessoas façam grandes esforços para proteger suas crianças do sofrimento, poucos parecem perceber que a primeira (e única) maneira garantida de prevenir todo o sofrimento de seus filhos é não trazer essas crianças à existência”, escreveu ele num livro de 2006 intitulado Better Never to Have Been: The Harm of Coming Into Existence [Melhor nunca ter sido: os danos de vir à existência]. Do ponto de vista de Benatar, reproduzir-se é intrinsecamente cruel e irresponsável — não apenas porque um destino horrível pode ocorrer a qualquer um mas porque a própria vida é “permeada por ruindade”. Por esse motivo, em parte, ele acredita que o mundo seria um lugar melhor se a vida senciente desaparecesse completamente.

Para uma obra de filosofia acadêmica, Better Never to Have Been encontrou uma audiência incomumente ampla. O livro tem 3,9 estrelas no GoodReads, onde um resenhista o considera “leitura obrigatória pro pessoal que acha que a procriação é justificável.” Há alguns anos Nic Pizzolatto, roteirista por trás de True Detective, leu o livro e fez um personagem anti-natalista e niilista, Rust Cohle, interpretado por Matthew McConaughey. (“Acho que a consciência humana é um trágico equívoco da evolução”, diz Cohle). Quando Pizzolatto mencionou o livro à imprensa, Benatar, que considera suas visões mais ponderadas e humanas que as de Cohle, saiu das sombras de uma vida reclusiva para esclarecer sua postura em entrevistas. Agora, ele já publicou The Human Predicament: A Candid Guide to Life’s Biggest Questions [O Dilema Humano: um cândido guia às grandes questões da vida], onde refina, expande e contextualiza seu pensamento anti-natalista. O livro abre com uma epígrafe dos Quatro Quartetos de T.S. Eliot — A Humanidade nunca pode suportar muito bem a realidade — e promete oferecer respostas “sombrias” a perguntas como “Nossas vidas têm sentido?” e “Não seria melhor se pudéssemos viver para sempre?”

Nascido na África do Sul em 1966, Benatar é chefe do Departamento de Filosofia da Universidade da Cidade do Cabo, onde também dirige o Centro de Bioética da universidade, que foi fundado por seu pai, Solomon Benatar, especialista em saúde mundialmente famoso — Benatar dedicou Better Never to Have Been “aos meus pais, mesmo que eles tenham me trazido à existência”. Além desses simples fatos, há pouca informação sobre ele online. Não existem fotos de Benatar na internet e os vídeos de suas palestras no YouTube consistem apenas de slides de PowerPoint. Um vídeo, intitulado “Qual a aparência do David Benatar?” dá um zoom numa fotografia granulada tirada do fundo de uma sala de aula, até que aparece uma seta com a inscrição “David Benatar”, que indica uma cabeça abstrata, pixelada, de um homem com um boné de beisebol.

Após concluir a leitura de The Human Predicament, escrevi a Benatar para perguntar se poderíamos nos encontrar. Ele concordou prontamente mas depois de ler algumas de minhas outras matérias, acrescentou uma nota:

Percebo que seu objetivo é retratar a pessoa que você entrevista, além de seu trabalho. Um fato pertinente sobre mim é que eu sou uma pessoa bem privada e ficaria mortificado se fosse descrito com o tipo de detalhe que observei nas outras entrevistas. Assim, eu declinaria de responder perguntas que considero pessoais demais (e ficaria igualmente desconfortável com o uso de uma fotografia minha). Vou entender perfeitamente se você não quiser prosseguir com a entrevista sob essas circunstâncias. Se, entretanto, você se contentar em conduzir uma entrevista que reconheça esse aspecto de mim, ficaria agradecido.

Sem sombra de dúvidas, Benatar é de uma personalidade privada por natureza. Mas seu anonimato também tem um propósito: impedir os leitores de psicologizarem-no e atribuírem suas visões a uma depressão, um trauma ou qualquer outro aspecto de sua personalidade. Ele deseja que seus argumentos sejam confrontados por si mesmos. “Às vezes me perguntam: ‘Você tem filhos?’” — contou-me mais tarde, falando sempre calma e espaçadamente num sotaque sul-africano — “E eu respondo: ‘Não vejo como isso é relevante. Se eu tiver, sou um hipócrita, mas meus argumentos ainda poderiam estar certos.’” Quando me declarou ser anti-natalista desde que era “bem jovem”, perguntei o quão jovem. “Criança”, disse, depois de uma pausa e com um sorriso desconfortável. Essa era exatamente uma daquelas perguntas pessoais que ele preferia não responder.

Benatar e eu nos encontramos no World Trade Center, onde a The New Yorker mantém seus escritórios. Ele é pequeno e barbeado, com uma cara de elfo e muito bem-vestido com um conjunto de suéter e calças lavanda. Eu o reconheci pelo seu boné de beisebol. No 64º andar do edifício, nos acomodamos num par de cadeiras almofadadas arranjadas próximas das janelas com vistas panorâmicas de Manhattan: o rio Hudson à esquerda, o rio East à direita e a silhueta dos arranha-céus do meio da cidade.

Cientistas sociais frequentemente perguntam às pessoas sobre seus níveis de felicidade. Uma pesquisa típica pede aos participantes para dar uma nota para suas vidas numa escala de 1 (“a pior vida possível para você”) a 10 (“a melhor vida possível para você”). Segundo o Relatório de Felicidade Mundial de 2017, os americanos entrevistados entre 2014 e 2016 deram a suas vidas uma nota média de 6,99 — menos feliz que a vida dos canadenses (7,32) mas mais feliz que a dos sudaneses (4,14). Outro levantamento pergunta: “Considerando todas as coisas, você diria que é (I) bem feliz; (II) um tanto feliz; (III) não muito feliz ou (IV) nem um pouco feliz?”. Nos últimos anos, em países como Índia, Rússia e Zimbábue, as respostas a essa questão tendem a ser mais positivas. Em 1998, 93% dos americanos consideravam-se bem felizes ou um tanto felizes. Já em 2014, após a Grande Recessão, esse número caiu, ainda que ligeiramente, para 91%.

Em resumo, as pessoas costumam dizer que a vida é boa. Para Benatar, elas estão enganadas. “A qualidade da vida humana é, ao contrário do que muitos pensam, na realidade bastante lamentável.”, afirma em The Human Predicament. O autor enumera uma lista crescente de males, feita para comprovar que as vidas das pessoas felizes são piores do que elas imaginam. Estamos, ele escreve, quase sempre famintos ou sedentos e quando não estamos, devemos ir ao banheiro. Quase sempre experimentamos um “desconforto térmico” — nos sentimos quentes demais ou frios demais — ou então estamos cansados sem poder tirar uma soneca. Sofremos com coceiras, alergias, resfriados, dores menstruais ou o calorão da menopausa. A vida é uma procissão de “frustrações e irritações”: ficar preso no trânsito, esperar na fila, preencher formulários. Forçados a trabalhar, geralmente consideramos nossos trabalhos cansativos e mesmo “aqueles que apreciam seu trabalho podem ter aspirações profissionais que continuam irrealizadas.” Muitas pessoas solitárias continuam solteiras enquanto os que se casam brigam e se divorciam. “As pessoas querem ser, parecer e sentir-se mais jovens e mesmo assim envelhecem irremediavelmente”, escreve Benatar, acrescentando em seguida:
Elas mantém grandes expectativas por seus filhos e essas são geralmente quebradas quando, por exemplo, a criança torna-se um desapontamento por um motivo ou outro. Quando os que estão ao nosso lado sofrem, sofremos só de ver. Quando morrem, ficamos órfãos.

Uma resposta grosseira a observações como essa seria: “Se a vida é tão ruim, por que você não se mata?”. Benatar dedica um capítulo de 43 páginas para provar que a morte só piora os nossos problemas. “A vida é ruim, mas a morte também é”, conclui. “Evidentemente, a vida não é ruim de todas as formas. Nem é a morte ruim em todos os casos. Entretanto, ambas são, em aspectos cruciais, terríveis. Juntas, elas constituem um torno existencial — o mecanismo perverso que executa os nossos dilemas.” Para ele, é melhor evitar entrar em um dilema desde o princípio. As pessoas às vezes se perguntam se vale a pena viver. Benatar considera melhor se perguntar questões mais sutis: Vale a pena continuar a vida? (Sim, porque a morte é ruim). Vale a pena começar a vida? (Não)

Benatar está longe de ser o único anti-natalista. Livros como Every Cradle is a Grave [Todo Berço é um Túmulo], de Sarah Perry e The Conspiracy Against the Human Race [A Conspiração contra a Raça Humana], de Thomas Ligotti, também têm seus seguidores. Existem muitos “anti-natalistas misantrópicos”: o Movimento pela Extinção Humana Voluntária, por exemplo, tem milhares de membros que acreditam que, por razões ambientais, os seres humanos deveriam deixar de existir. Para os anti-natalistas misantrópicos o problema não é a vida e sim nós mesmos. Benatar, ao contrário, é um “anti-natalista compassivo” e seu pensamento é paralelo ao do filósofo Thomas Metzinger, que estuda consciência e inteligência artificial. Metzinger defende um anti-natalismo digital, argumentando que seria errado criar programas de computador artificialmente conscientes porque ao fazer isso aumentaríamos a quantidade de sofrimento no mundo. O mesmo pode-se dizer dos seres humanos.

Como um boxeador que treinou seus contragolpes, Benatar antecipa uma variedade de objeções. Muitas pessoas sugerem que as melhores experiências da vida — o amor, a beleza, a descoberta, etc. — compensam as piores. Diante disso, Benatar replica que a negatividade da dor é maior que a positividade do prazer. A dor dura mais: “Existe uma coisa chamada dor crônica mas nada como um prazer crônico”, afirma. A dor também é mais poderosa: você trocaria cinco minutos da pior dor imaginável por cinco minutos do maior dos prazeres? Além disso, num nível mais abstrato, podemos considerar que perder boas experiências não é tão ruim quanto passar por coisas ruins. “Para uma pessoa que existe, a presença de uma coisa ruim é ruim e a presença de algo bom é bom.”, explica Benatar, que prossegue: “Mas compare isso com um cenário no qual tal pessoa jamais existiu: aí, a ausência do que é ruim seria bom mas a ausência do que é bom não seria ruim, porque não haveria ninguém para ser impedido de ter coisas boas.” Essa assimetria, continua o filósofo, “coloca as cartas completamente contra a existência” pois sugere que “todos os desgostos e todas as misérias e todos os sofrimentos poderiam acabar sem qualquer custo real.”

Algumas pessoas argumentam que ao falar de dor e prazer perde-se o foco: mesmo se não for boa, a vida é significativa. A isso, Benatar responde que, de fato, a vida humana é cosmicamente insignificante: nós existimos num universo ou talvez mesmo num multiverso indiferente e estamos sujeitos a forças naturais cegas e despropositadas. Na ausência de um sentido cósmico, só nos restam sentidos “terrestres” — e, conforme o autor, há “algo de circular em argumentar que o propósito da existência humana é que os indivíduos humanos deveriam ajudar uns aos outros.” Benatar também rejeita o argumento de que o lutar e o sofrer, por si mesmos, podem dar sentido à existência. “Eu não acredito que o sofrimento nos dá sentido”, disse ele. “Eu penso que as pessoas tentam buscar sentido no sofrimento porque de outro modo o sofrer seria tão gratuito quanto insuportável.” Ele até reconhece que “Nelson Mandela criou um sentido pelo meio como reagiu diante do sofrimento — mas isso não é defender as condições na qual ele viveu.”

Perguntei a Benatar por que a resposta adequada aos seus argumentos não seria tentar fazer do mundo um lugar melhor. A possível criação de um mundo melhor no futuro, respondeu-me, dificilmente justifica o sofrimento das pessoas no presente. De qualquer modo, um mundo dramaticamente aperfeiçoado é impossível. “Isso nunca vai acontecer. As lições parecem nunca ser aprendidas, parecem nunca ser absorvidas. Talvez alguém aqui e ali possa aprendê-las mas você ainda verá essa loucura [que é o mundo] ao seu redor.”, disse Benatar. “Você pode até dizer: ‘Pelo amor de Deus! Vocês não percebem que estão cometendo os mesmos erros que os humanos já cometeram? Custa fazer as coisas de modo diferente?’ Só que isso não vai acontecer.” Em última instância, diz ele, “os desgostos e sofrimentos estão arraigados demais na estrutura de vida senciente para serem eliminados.” Nesse ponto, sua voz se torna mais urgente e seus olhos ficam esbugalhados: “Somos obrigados a aceitar o que é inaceitável. É inaceitável que as pessoas (e os outros seres) tenham que passar pelo que passam sem ter quase nada o que fazer a respeito.” Numa conversa normal, eu teria murmurado algum consolo. Nesse caso, fiquei sem saber o que dizer.

Benatar escolheu um restaurante restaurante vegano para o almoço e saímos a pé até lá, caminhando ao longo do Hudson. No fim da Vesey Street, passamos pelo Memorial da Fome Irlandesa — um quarto de acre [cerca de 1000 metros quadrados] de solo transplantado da Irlanda em 2001 para relembrar os milhões que sucumbiram durante da Grande Fome da Irlanda. A pedido de Benatar, passamos ali alguns minutos, explorando e lendo os relatos históricos apresentados no portal. A fome durou sete anos e um homem, ao recordá-la, escreveu: “Ela habita em minha memória como uma longa noite de amargura.”

O dia estava ameno. No Battery Park havia mães em piqueniques com suas criancinhas pela grama. Um grupo de colegas de trabalho jogava tênis-de-mesa. Perto da água, casais passeavam de mãos dadas. Na ciclovia, passavam os corredores — homens descamisados e de peitos musculosos e mulheres em roupas chiques de ginástica.

“Você sente uma dissonância entre suas crenças e seu ambiente?”, perguntei. “Não sou contra as pessoas se divertirem nem nego que a vida contém coisas boas”, disse Benatar, rindo. Dei uma olhada e vi que ele havia removido seu suéter e agora estava em mangas de camisa. Seu boné parecia intocado. Nós alcançamos o ponto onde, oito semanas mais tarde, um homem de 29 anos iria matar oito pessoas e ferir outras 11 com uma van.

Como todo mundo, Benatar sabe que suas opiniões são perturbadoras. Ele mantém, portanto, uma ambiguidade sobre compartilhar suas ideias. Ele não seria de entrar numa igreja, dirigir-se ao púlpito e declarar que Deus não existe. Similarmente, ele não gosta da ideia de ser um embaixador do anti-natalismo. A vida, diz ele, já é desagradável o bastante. Ele conforta-se justificando que, como seus livros são filosóficos e acadêmicos, serão lidos apenas pelos que os procuram. Ele sabe que há leitores gratos por encontrar seus pensamentos secretos expressados. Um homem com vários filhos leu Better Never... e depois disse a Benatar que acreditava que ter tido eles havia sido um terrível engano. Pessoas que sofrem de terríveis aflições mentais e físicas escrevem-lhe para dizer que desejariam jamais ter existido. Ele também recebe cartas de pessoas que compartilham de suas visões mas são paralisadas por isso. “Eu me encho de tristeza por pessoas como essas”, disse, em voz baixa. “Elas têm uma visão precisa da realidade e estão pagando um preço por isso.” Perguntei a Benatar se ele alguma vez já considerou seus próprios pensamentos avassaladores. Ele sorriu de modo desconfortável — era outra questão pessoal — e disse que escrever ajuda.

Ele não imagina que o anti-natalismo será amplamente adotado: “isso vai contra muitos impulsos biológicos”. Ainda assim, ele têm um quê de esperança: “Diante da loucura do mundo como um todo, o que você ou eu podemos fazer?”, disse, enquanto caminhávamos. Nada, “mas cada casal ou cada pessoa pode decidir não ter um filho. Evita-se assim uma imensa quantidade de sofrimento, o que é tudo pelo bem.” Quando os amigos têm filhos, ele se vê medindo suas palavras. “Sinto-me dilacerado”, confessa. Ter um filho é “bastante terrível, dado o dilema no qual ele vai se encontrar”. Por outro lado, o “otimismo faz a vida ser mais suportável.” Há alguns anos, quando uma colega filosofa anunciou que estava grávida, a resposta de Benatar foi o mutismo. “Vamos — ela insistia — você tem que estar feliz por mim”. Benatar consultou sua consciência e respondeu: “Eu tô feliz — por você.”

No almoço, nos sentamos perto de uma menininha e da mãe dela. A garota tinha uns 8 anos, usava um vestido e carregava um livro. “Você quer levar elas para casa?”, perguntou a mãe, apontando para algumas batatas fritas. Sim, respondeu a menina. Minha conversa com Benatar continuava mas eu achei difícil falar sobre anti-natalismo ao lado de uma mãe e sua filha. Passamos a maior parte do nosso almoço discutindo amigavelmente sobre nossos hábitos de trabalho. Na rua, trocamos um aperto de mãos. “Vou andar por aí mais um pouco”, despediu-se Benatar, que queria passear por West Village antes de ir ao aeroporto. Eu fui para o sul e, perto do World Trade Center, desci dentro do Oculus, a vasta e sepulcral praça e estação ferroviária que substituiu a destruída nos ataques de 11 de setembro. Com seu teto agudo e suas costelas de mármore branco, é um misto de esqueleto e de catedral. De pé, na escada rolante, assisti uma mulher que tinha uma jaqueta num braço e brigava para vestir o outro. Um homem de negócios obeso, fones de ouvido metidos nas orelhas, passou depressa ao meu lado, acertando-me com sua maleta. Ao chegar lá embaixo, ele ajudou a mulher com o casaco e ela pode terminar de vesti-lo.

Joshua Rotman é editor do arquivo da “The New Yorker”. Ele contribui frequentemente para a revista, onde escreve artigos sobre livros e ideias.

21 de novembro de 2017

Cartoons e luta de classes

Em 1941, os animadores da Disney abandonaram o trabalho para exigir que o New Deal fosse levado para o Reino Mágico.

Kenneth Bergfeld e Mark Bergfeld

Jacobin

Impressionantes piquetes de animadores em 1941. Coleções de Bob Cowan. 

Tradução / Todo americano cresceu assistindo aos filmes da Disney, mas quantas pessoas ouviram falar da “guerra civil na animação”?

As análises culturais sobre a Disney e seus produtos são comuns, e os efeitos sociológicos de sua dominação multimídia foram discutidos ad infinitum. Mas pouca atenção foi dada à greve dos animadores de 1941 que quase terminou com o “Reino Mágico”. Nunca, antes ou depois, o trabalho por trás dos filmes que moldaram bilhões de infâncias foi tão fortemente iluminado. À medida que as novas lutas dos trabalhadores surgem por toda a indústria do entretenimento, essa história é mais relevante hoje do que nunca.

Trabalhando para Walt


Walt Disney não podia contar com seu próprio talento artístico para construir seu império. Ele era conhecido nem por ser um bom artista nem um bom desenhista. Os Simpsons até o satirizaram por plagiar o Mickey Mouse e o Oswald the Lucky Rabbit de seu criador original, Ub Iwerks.

Seu sucesso, ao invés disso, ativou sua capacidade de transformar o trabalho incrivelmente intensivo do processo de animação. Grandes expansões tecnológicaspermitiram que Disney sincronizasse imagem e som, empurrando a animação para além de seus começos rudimentares. Este avanço trouxe a animação – e com isso, o Reino Mágico – das margens do cinema para o seu mainstream.

Quando Disney fez o Branca de Neve, os animadores ainda desenharam figuras à mão em painéis de celulóide claros, que eram então postos acima de uma ou duas camadas de fundo estático pintadas em papel. Para criar a ilusão do movimento, os animadores tiveram que produzir vinte e quatro imagens por segundo. Para o Branca de Neve, os trabalhadores fizeram 130 mil desenhos de movimento, para não mencionar os painéis de fundo.

Para simplificar esse processo, Disney colocou mais de oitocentos artistas em uma linha de montagem de produção em escala industrial. Seu método para controlar os trabalhadores nesta operação massiva consistiu em táticas psicológicas retiradas de estudos da época. Ele escolheu favoritos, roubou o crédito dos trabalhadores e pagou salários diferentes pelo mesmo emprego. Por exemplo, animadores selecionados recebiam vagas de estacionamento e assentos reservados em testes de exibição internos, enquanto outros tinham que lutar pelos assentos restantes ou ficar longe juntos.

Os salários variavam de US$ 12 a US$ 300 por semana. Se um animador surgisse com uma piada enquanto trabalhava em um curta, eles recebiam um bônus de US$ 3,50.

Walt Disney acreditava que uma empresa eficiente era construída pelo “trabalho em equipe” e pela “voz dos funcionários”. Para difundir o crescente descontentamento entre os animadores, ele lançou a Federação de Cartunistas de Tela da Disney, um sindicato da empresa que ele esperava que iria conter as demandas de seus trabalhadores.

Os animadores atacam de volta


Os animadores fizeram Branca de Neve, Fantasia e Pinóquio ao mesmo tempo. Eles trabalharam longas horas sob pressão extrema, e muitos ficaram sem pagamento por meses. Walt disse que eles iriam receber um pagamento bônus quando Branca de Neve se gerasse lucro – uma promessa vazia, muito familiar entre os trabalhadores criativos hoje. Na medida em que o salário nunca se materializou, provocou um senso de injustiça entre os animadores.

Surpreendentemente, Art Babbitt, animador chefe e presidente do sindicato da empresa, se simpatizou com a força de trabalho com baixos salários. Ele inicialmente ingressou na Federação de Cartunistas de Tela da Disney para lutar contra a corrupta Aliança Internacional dos Funcionários de Estágio Teatral (IATSE), que estava ligada ao crime organizado. Mas Babbitt logo passou a exigir um aumento de dois dólares para incursores.

Mal sabia ele o que o esperava. Babbitt imediatamente teve que enfrentar o advogado de Disney, Gunther Lessing. Numa vida anterior, Lessing colaborou com o revolucionário presidente do México Francisco Madero e defendeu os radicais no tribunal. Agora, trabalhando para Disney, Lessing não deu nem um centímetro aos sindicatos.

Havia também o irmão de Walt, Roy, diretor de finanças da empresa. Ele recorreu a ameaças físicas, dizendo a Babbitt para manter o nariz fora de seus negócios ou então eles iriam “cortá-lo”.

Não demorou muito para que Babbitt percebesse que a Federação de Cartunistas de Tela da Disney foi projetada para impedir que os trabalhadores se envolvessem com o sindicalismo da indústria. Depois que uma das incursoras desmaiou porque não podia comprar o almoço, Babbitt juntou-se à Associação dos Cartunistas de Tela de Herbert Sorrell, um local do Sindicato de Pintores e Decoradores.

Naquele momento, Herbert Sorrell já havia experienciado uma quantidade tremenda de lutas. Com doze anos de idade, ele se juntou a uma planta de canalização de esgoto de Oakland, onde colegas de trabalho rotineiramente batiam nele. Isso terminou quando ele decidiu derrubar um deles sobre a cabeça com uma pá. Após a Primeira Guerra Mundial, ele se tornou um pugilista profissional premiado e depois se mudou para Los Angeles para trabalhar como pintor nos estúdios. Depois que ele foi demitido da Universal por ser membro do sindicato, ele canalizou sua energia para o ativismo trabalhista.

Disney foi o jogador-chave da indústria. Sua loja estabeleceria os salários e as condições para todos os estúdios de animação. Sorrell estava empenhado em transformar o Reino Mágico em uma “tigela de poeira” se a empresa não cedesse.

O dragão relutante


A disputa estava fervilhando durante um tempo quando, em fevereiro de 1941, Walt Disney chamou seus trabalhadores juntos para abordar “a verdadeira crise que estamos enfrentando”. No estilo das reuniões de audiência cativa de hoje, ele explicou como havia lutado contra os preconceitos e estabelecido o desenho animado como uma forma de arte. Ele regalou seus trabalhadores mal pagos com histórias dos anos de fome, dívidas e hipotecas. O discurso falhou. Em 10 de maio de 1941, o artigo da Nation afirmou: “Este discurso recrutou mais membros para a Associação dos Cartunistas de Tela do que um ano de campanha”.

Cada movimento que Disney fazia exacerbava o descontentamento dos trabalhadores. Em um ponto, foi registrado que ele teria dito: “Se vocês firmarem com o sindicato. . . Eu vou. . . Eu nunca vou deixar vocês nadarem na minha piscina novamente!”. Ao qual Al Dempster, um animador chefe, respondeu: “Walt, nadar na sua piscina não alimenta meus filhos nem paga meu aluguel!”.

O sindicato reuniu 400 cartões sindicais de 560 trabalhadores elegíveis. Entre eles, o avô paterno de Naomi Klein, que trabalhava na Disney como ilustrador e acabaria por acampar fora do estúdio de L.A. por vários meses. Após negociações mal sucedidas, a equipe votou por uma greve indefinida a partir de 26 de maio.

Walt Disney permaneceu intransigente e até mesmo demitiu Babbitt e outros animadores chefes em retaliação. À medida que a greve estava prestes a começar, Disney apelou ao Conselho Nacional de Relações Trabalhistas (NLRB) para reconhecer o sindicato da empresa visto que os trabalhadores “são livres para participar do que [eles] desejam”.

Disney esperava que o NLRB levasse sua estatura em conta, governasse a seu favor e entregasse o direito à negociação coletiva para o sindicato preferido da empresa. Mas para o desânimo de Walt, a greve começou como planejado, e a Associação dos Cartunistas de Tela trouxe 550 trabalhadores para as linhas de piquete.

Disney respondeu com uma campanha de intimidação. Ele contratou fotógrafos para documentar os trabalhadores em greve. Pior ainda, ele demitiu dezenove funcionários, e rumores circulavam que haveria mais duzentos.
Uma mãozinha

Os grevistas escolheram combinar a escalação e começaram a bloquear os caminhões de entrar no estúdio.

Mas o músculo industrial não seria suficiente. Esta era uma luta pelo futuro da indústria, e ambos os lados sabiam disso. Como em outras disputas trabalhistas, o poder da greve tinha que ser expandido tanto horizontalmente para a comunidade quanto verticalmente no modelo comercial da empresa.

Os trabalhadores distribuíram panfletos nos cinemas exigindo que os gerentes dos teatros e o público boicotassem os filmes de Disney. Eles também apelaram para o resto do movimento trabalhista por doações de alimentos para que pudessem permanecer em greve.

Verticalmente, eles fizeram pressão nos fornecedores. Em meados de julho, os trabalhadores convenceram a Technicolor de boicotar a Disney, parando a entrada de filmes no estúdio e de serem processados no caminho de saída. Williams e British Pathé – duas outras empresas – também suspenderam o processamento de filmes da Disney.

Em 5 de julho, o NLRB reconheceu oficialmente a greve e enviou um conciliador para arbitrar entre os sindicatos e a Disney. Nove sindicatos da AFL voltaram a trabalhar, mas mesmo isso não conseguiu parar os animadores. O advogado de Disney, Lessing, enviou um telegrama para Washington culpando os comunistas pela parada do trabalho em curso.

Rachaduras começaram a aparecer no edifício da greve. Escrevendo em nome “daqueles que voltaram a trabalhar”, o animador R.F. Fredericks argumentou que ser anti-sindicalista era “o American way” e que quaisquer diferenças com a empresa deveriam ser tratadas dentro da organização e não através de um agente externo.

Essa tática de chefe comumente usada iguala as demandas dos trabalhadores com uma força externa, permitindo ao empregador recuperar a hegemonia através das palavras da maioria silenciosa do local de trabalho.

O New Deal finalmente havia chegado ao Reino Mágico.

Derrota ou vitória?


No entanto, as divisões entre ex-grevistas e as cicatrizes foram profundas, e Walt Disney não perdoou aqueles que se rebelaram. É por isso que Tom Sito chama a greve de “Guerra Civil na Animação” em seu livro Drawing the Line: The Untold Story of the Animation Unions de Bosko to Bart Simpson. Em novembro de 1941, Disney demitiu mais trabalhadores, sublinhando sua posição intransigente.

Apesar do recuo anterior no NLRB, Walt aprendeu a usar a mudança de clima político e o macartismo para desencorajar a organização dos trabalhadores em seu crescente império. Em várias ocasiões, ele prestou declarações na Casa das Atividades Não-Americanas, denunciando os participantes da greve e os sindicatos como comunistas e acusando-os de ter laços com a União Soviética.

Graças ao seu testemunho, muitos animadores e escritores enfrentaram o desemprego, a lista negra, a perseguição política e o estigma social, incluindo o proeminente roteirista e vencedor do Oscar, Dalton Trumbo.

Podemos rastrear as atuais relações trabalhistas, o fracasso dos sindicatos e as atividades de prevenção na Disney voltando à greve. A estratégia de recursos humanos de Disney é o antepassado direto das relações de trabalho contemporâneas, em que as queixas são individualizadas e os custos são externalizados para os trabalhadores.

Com a inovação tecnológica, as estratégias de evasão sindical tornaram-se comuns em toda a indústria da animação. Por exemplo, a empresa de produção Titmouse, Inc., responsável pela próxima série da Disney, Motorcity, recentemente dividiu-se em duas empresas separadas. A segunda entidade pode subcontratar trabalho para lojas não-sindicalizadas onde os salários são muito menores.

Artistas subcontratados ganharão apenas quatrocentos dólares por semana, a taxa de salário mais baixa (ajustada pela inflação) já obtida por um artista americano trabalhando em uma produção de animação da Disney. Seus colegas do sindicato ganham quase três vezes mais.

Enquanto isso, a administração continua a intimidar os animadores. Os produtores de Robot Chicken afirmam que a sindicalização aumentaria os custos de produção em 20 a 25%, o que potencialmente levaria ao cancelamento do show. O co-criador de Rick e Morty, Justin Roiland, foi mais explícito quando declarou “foda-se o sindicato” depois que seus animadores e artistas se juntaram à Associação de Animação em 2014.

Em 1931, Walter Benjamin notou de maneira precisa: “Relações de propriedade no filme de Mickey Mouse; aqui, pela primeira vez, o próprio braço de alguém, de fato, o próprio corpo de alguém pode ser roubado”.

Isto aplica-se não só ao público de massa colado em seus assentos, mas também aos trabalhadores que produzem esses filmes.

19 de novembro de 2017

Sabemos qual é o problema

Dizer mais uma vez: os principais rendimentos estão sendo conduzidos pelo capital.

Matt Bruenig


torbakhopper / Flickr

Jonathan Rothwell publicou um artigo no New York Times que tenta explicar por que a renda do 1% superior decolou nos últimos anos. David Leonhardt publicou um artigo semelhante em agosto. Tanto Rothwell quanto Leonhardt citam os dados de Piketty-Saez-Zucman (PSZ) para fundamentar suas reivindicações sobre o aumento da renda superior do 1 por cento, mas não mencionam que, no conjunto de dados do PSZ, todos os aumentos na renda superior de 1% desde 2000 vieram da renda do capital e não do trabalho.

A teoria preferida de Rothwell sobre por que os altos rendimentos aumentaram tanto é que regulamentos têm impulsionado os rendimentos do trabalho de uma pequena classe de assalariados do topo:

"Quase todo o crescimento dos principais ganhadores americanos vem de apenas três setores econômicos: serviços profissionais, finanças e seguros e cuidados de saúde, grupos que tendem a se beneficiar de barreiras regulatórias que os protegem da concorrência."

Mas se os ganhos inflados são a principal causa do crescimento da renda superior, isso deve aparecer na renda do trabalho (salários, remuneração, o componente trabalhista do rendimento do trabalho por conta própria) e não na renda do capital (juros, aluguéis, dividendos). No entanto, quando você decompõe a renda do 1 por cento superior em componentes de mão-de-obra e capital, o que você encontra é que, nos últimos 14 anos, a renda do capital é o único motor da renda dos 1% superiores. Na verdade, os rendimentos do trabalho para os 1% superiores realmente diminuíram durante esse período.

Crescimento dos rendimentos nos EUA, 1980-2014

The National Bureau of Economic Research

O que é estranho sobre essa omissão por Rothwell é que o papel do capital nesses rendimentos é notado no resumo do próprio artigo que Rothwell cita em seu texto: "O aumento dos principais rendimentos foi primeiro um fenômeno da renda do trabalho, mas tem sido principalmente um fenômeno renda do capital desde 2000."

Os regulamentos nos setores de serviços de saúde, finanças e serviços profissionais podem ser um problema e os principais ganhadores nesses setores podem receber um impulso desses regulamentos. Mas se é com o aumento maciço do 1 por cento que você está preocupado, a fonte do problema nos últimos anos parece estar em outro lugar.

17 de novembro de 2017

Os hippies soviéticos

Um olhar sobre a contra cultura atrás da Cortina de Ferro.

Um entrevista com
Terje Toomistu

Entrevistado por
Loren Balhorn


Guru Mihkel Ram Tamm, late 1970s. Courtesy of Soviet Hippies.

Tradução / Embora os militantes de esquerda veteranos fiquem incomodados com a ideia, na imaginação popular a cultura hippie continua associada a protestos políticos. Durante o auge da radicalização estudantil da década de 1960, a música, roupas e estética visual associadas ao movimento hippie permearam a cultura de protesto da Nova Esquerda. Esta imagem continua a animar nos dias de hoje as caricaturas de direita sobre a Esquerda. 

Embora este tipo particular de rebelião cultural fosse mais proeminente nas sociedades fordistas do ocidente capitalista, esta atravessou o Atlântico e ganhou forma própria na cada vez mais estagnada União Soviética de Leonid Brezhnev. Aí, milhares de jovens descontentes reuniram-se numa rede underground de pessoas que se identificavam enquanto hippies, à qual chamaram Sistema. A história do movimento, maioritariamente esquecida, é o foco de um recente documentário intitulado Soviet Hippies, onde se capta esta parte cultural única da Guerra Fria, na qual um difuso sentimento anti autoritário ressoou com os jovens dos dois lados da Cortina de Ferro. Loren Balhorn falou recentemente com o realizador, Terje Toomistu.

O seu filme documenta a vida de uma rede de hippies chamada Sistema, concentrada sobretudo nos Estados Bálticos, mas que se espalhou pela URSS. De onde surgiu o nome e por que se tornou na alcunha deste grupo de miúdos soviéticos rebeldes e de cabelos compridos?
De acordo com o que se diz, esta surgiu com um hippie carismático que vivia em Moscovo no final de 1960, chamado Sontse, que significa “ensolarado”. Os outros hippies referiam-se a ele como “o sol”, pelo que o grupo à sua volta começou aos poucos a ser chamado de “sistema solar”. É provável que o nome Sistema venha daí. De qualquer modo, nesta fase o Sistema ainda não funcionava como aquilo que viria a tornar-se mais tarde: uma rede auto organizada e auto sustentável de pessoas que partilhavam certos valores e ideais, viajando pelo país e reunindo em casa das pessoas e em acampamentos temporários com muitas pessoas.

Quando surgiu esta rede?
A rede propriamente dita surgiu alguns anos depois, no início dos anos de 1970. O movimento começou entre algumas pessoas das maiores cidades da União Soviética que tinham acesso à música ocidental. Algum tempo depois, começaram a questionar-se sobre se existiriam outras pessoas como elas noutras partes do país, e rapidamente estabeleceram contacto com outras pessoas de cabelos compridos em cidades de grandes dimensões. Foi aí que o Sistema se começou a desenvolver enquanto cultura, com os hippies a viajar pela URSS e a fazer “couch surfing”, digamos assim, em casa de outras pessoas de cabelos compridos. Os membros do Sistema compilavam em cadernos os números de telefone de hippies de outras cidades, permitindo-lhes estabelecer contacto com pessoas com os mesmos ideais em Kaunas, Tallinn e outros sítios, durante as suas viagens de verão.

E a política do movimento hippie? Parece-me que estes se estavam a rebelar contra o mesmo tipo de atitudes conservadoras e normas sociais que no contexto ocidental, embora sob um diferente sistema socioeconómico e instituições políticas. Ao passo que, nos anos de 1960, muitos jovens rebeldes nos Estados Unidos da América idealizavam, por exemplo, a Revolução Cultural de Mao na China, muitos das pessoas no seu filme parecem idealizar tudo o que fosse estado-unidense. Porém, tal como o filme admite, muitos dos primeiros hippies eram filhos da elite soviética. Quais os problemas e fatores que deram origem a este afastamento da sociedade soviética?

Existiram certamente algumas semelhanças entre o Leste e o Ocidente, mas também algumas diferenças. Na URSS o pacifismo não era puramente político - tinha também implicações a nível quotidiano. A sociedade soviética da altura era profundamente autoritária e altamente militarista. A maioria dos hippies rejeitava essas atitudes e tentavam modelar as suas vidas diárias em torno de valores como a “paz” e o “amor”. 

Dito isto, a cena hippie começou com pessoas que tinham acesso a música e a jornais ocidentais e é claro que isso só poderia acontecer entre a elite - as únicas pessoas na União Soviética que tinham acesso a bens do Ocidente. Altos funcionários - membros do Partido Comunista, agentes do KGB, etc. - conseguiam obter autorização para viajar para países ocidentais, trazendo geralmente todo o tipo de presentes estrangeiros e exóticos para os seus filhos. Os filhos da elite também tinham mais dinheiro para comprar discos em contrabando, algo que era muito caro. Muitas vezes, as pessoas formavam pequenos clubes de quatro ou cinco amantes de música que reuniam dinheiro para comprar um disco que, depois, copiam à vez para cassete.

Nesse sentido, continha um aspeto de dissidência, mas também era uma questão de estatuto. Se se tinha uma boa coleção de discos, tinha-se muitos amigos. Por isso, pelo menos no início, os hippies eram filhos de famílias soviéticas poderosas. Em termos ideológicos, existia certamente uma idealização do Ocidente como sendo o “mundo livre” e, a um menor nível, uma idealização do mercado livre.

Então o movimento tinha um certo cunho pró-mercado livre?
Sim, porque associavam o mercado livre a boa música e a boas calças de ganga. Não é que fossem a favor do capitalismo per se, mas tinham uma noção idealizada da liberdade de consumo. Isto era mais ou menos verdade entre a população soviética em termos mais gerais: o consumo era reprimido e, em consequência, idealizado. As pessoas queriam usar calças de ganga como expressão desse desejo de liberdade. É difícil julgá-los por isso em retrospectiva: numa sociedade onde os bens são difíceis de obter, é compreensível que o consumo ganhasse esse significado.

Uma coisa que não surge no seu filme é a invasão soviética do Afeganistão em 1979. A guerra no Afeganistão teve algum efeito no movimento hippie? Cresceu ou teve alguma relação com o sentimento anti guerra?
Bem, o Afeganistão não entra no meu filme porque o documentário concentra-se no surgimento do movimento hippie, que se tornou numa entidade social visível em 1971, quando os hippies se reuniram em Moscovo para protestar contra a guerra do Vietname. Esta ocasião foi escolhida por se alinhar com o posicionamento em termos de política externa do Governo soviético, bem como com o pacifismo prevalente entre a comunidade hippie. Foi também um momento importante para o movimento, sobretudo porque foram todos detidos e identificados pela polícia, o que de repente fez com que ser hippie na URSS fosse algo muito perigoso.

Desta forma, as autoridades mataram o elemento político do movimento - este tornou-se muito mais underground, mais virado para si mesmo e talvez mais espiritual, mas também muito mais envolvido com drogas e álcool. Os aspetos sociais e políticos recuaram. Quando pergunto aos hippies mais velhos se estes se interessavam por política, estes respondem geralmente que viam a política como algo estagnado. Sentiam não ter como mudar algo na sociedade soviética e que seriam presos caso tentassem. De certa forma, acho que a sua rejeição da política era em si mesmo um protesto.

Existia alguma ligação entre o movimento hippie, ou o Sistema, e a intelligentsia de Leninegrado ou a dissidência soviética avant-garde, ou tratavam-se de meios separados?
Existiam certamente ligações. Na Estónia, por exemplo - que era uma sociedade comparativamente livre em relação à maioria da URSS - as pessoas que trabalhavam na música e nas artes, literatura, etc., estavam sempre meio que entre estas esferas oficiais e não oficiais, produzindo a sua arte livre e radical ao mesmo tempo que tentavam manter boas relações com as autoridades. Muitas pessoas também se aproximaram da cultura hippie quando eram jovens, antes de se tornarem artistas soviéticos “oficiais”, mais estabelecidos e respeitados. Foquei-me deliberadamente no Sistema, este grupo de hippies mais radicais que realmente “saíram” da sociedade soviética e viajaram pelo país como espíritos livres, mas existiram certamente ligações com artistas e a intelligentsia.

E o género? Não é bem um foco do filme, mas várias das pessoas entrevistadas fazem comentários ao de leve onde sugerem que as políticas de género na comunidade não eram particularmente progressistas. Existia um elemento feminista nestes meios?
Os hippies soviéticos não tiveram uma revolução sexual comparável à que associamos aos hippies ocidentais - as comunas, o amor livre e tudo isso. Os hippies soviéticos apaixonavam-se, viajavam pelo país em casais, passavam de um parceiro para outro, etc., mas não existia esse elemento de “amor livre”. Havia, claro, muito sexo, mas mais sob forma de casos que ocorriam entre pessoas nas suas viagens pela União Soviética. Nesse sentido era muito convencional, mas ainda assim muito mais liberal que o resto da sociedade soviética!

Perguntei a várias mulheres hippies se se consideravam feministas, mas estas geralmente diziam que isso não se relacionava com as sua vidas (com algumas exceções, claro). Porém, ouvi falar de uma mulher chamada Ophelia que liderava um grupo de hippies de Moscovo e que se interessava muito por drogas psicadélicas. Teve vários namorados ao mesmo tempo e praticava uma forma consciente de “amor livre”. O movimento tinha mulheres fortes, mas em geral “os homens eram homens e as mulheres eram mulheres”, por assim dizer. Há que ter em mente que muitas mulheres eram socializadas no movimento quando se apaixonavam por homens hippies.

Em muitos países do Bloco de Leste houve certamente uma sobreposição entre políticas pró-democracia e um ressurgimento do nacionalismo. Houve uma dinâmica semelhante na comunidade hippie soviética? No documentário há pelo menos um hippie ucraniano que afirma “odiar a Rússia”, por exemplo.

Sim e não. Alguns hippies envolveram-se com o nacionalismo, sobretudo nos Bálticos onde as pessoas ainda viam a era soviética como uma era de ocupação, havendo assim um toque nacionalista desde o início. Ainda assim, o Sistema era multicultural e multinacional, com o russo servindo geralmente de língua comum. Os hippies que se envolveram mais com a espiritualidade não se relacionaram muito com o crescimento do nacionalismo nos anos de 1980, embora alguns dos protagonistas do filme, sobretudo os ucranianos, misturassem um pouco a cultura hippie com nacionalismo.

Tal como terá possivelmente visto no filme, os desenvolvimentos não foram iguais. Alguns hippies pós-soviéticos mantiveram-se comprometidos com o pacifismo e tentaram organizar manifestações contra a guerra no Leste da Ucrânia, por exemplo. A reunião anual de hippies em Moscovo, onde foi filmada a cena de encerramento do documentário, comemora o protesto anti-guerra de 1971 que tornou o movimento hippie visível aos olhos do público. Algumas das pessoas com quem falámos aí pareciam sentir uma certa continuidade entre o pacifismo dessa era e dos dias de hoje.

Há uma cena particularmente engraçada no filme, onde dois hippies mais velhos descrevem a um grupo de jovens espantados a forma como cultivavam o seu ópio e canábis. O conceito de uso destas drogas de forma recreativa foi importado do Ocidente ou estava relacionado com tradições locais?
Essas drogas já lá estavam. Não é como se os hippies soviéticos tivessem pensado de repente “oh, os hippies do Ocidente fumam erva? Como é que podemos arranjar?”. Existiam campos de canábis em algumas partes da Rússia, Ásia Central e Ucrânia, geralmente para produção de cânhamo. Os hippies mais velhos contam histórias de mulheres hippies a correrem nuas pelos campos de canábis, recolhendo o pólen no seu suor e produzindo haxixe a partir disso.

Também fiquei surpreendido com as quantidades. A unidade de medida mais pequena para a canábis era a de uma caixa de fósforos, depois uma chávena de chá e, depois disso, geralmente um cesto inteiro. As autoridades perceberam eventualmente que se estava a passar alguma coisa com a erva, mas ficaram mais preocupados com o aspeto do negócio que propriamente com o uso da droga.

Estavam mais preocupados com o envolvimento de cidadãos soviéticos em “especulação” que no facto de estes usarem drogas - suspeito que alguns agentes nem conseguissem compreender o conceito. Existem muitas histórias sobre rusgas da polícia a casas de hippies nas quais procuravam literatura proibida e ignoravam por completo as pilhas de canábis na mesa da cozinha. Muitos contam-me que fumavam charros no Café Moscow, na baixa de Tallinn, pois ninguém reconhecia o cheiro ou sabia o que aquilo era. Para consumir ópio geralmente faziam chá de papoila. No entanto, o problema aqui prendia-se com a dificuldade de medir a quantidade de ópio que ia com o chá, pelo que por vezes as pessoas morriam de overdose.

Uma coisa que noto na música rock da era soviética em geral é a sua mistura de estilos bastante eclética, onde combinam influências e géneros do cânone do pop-rock ocidental com as suas próprias criações e de formas bastante surpreendentes para os ouvidos mais habituados às cenas musicais americanas ou britânicas. Até que ponto é que estes músicos conseguiam promover o seu trabalho através de canais estatais e oficiais? Alguns dos telediscos que surgem no documentário parecem ter custos de produção particularmente elevados. Tocavam na televisão ou na rádio ou eram totalmente alternativos?
Eram maioritariamente alternativos. Aqueles que conseguiam gravar a sua música de forma profissional geralmente descreviam-no como um “milagre”. A banda estónia Suuk, por exemplo, conseguiu gravar(link is external) o seu disco em 1976 num único dia numa “rádio móvel” do Estado. Este era o caso da Estónia, onde as pessoas tinham mais liberdades que no resto da URSS, motivo pelo qual o meio era mais vibrante aí que nos restantes sítios. Ainda assim, estas bandas não assinavam ou não eram promovidas pela Melodia, a editora musical do Estado. Ocorreram algumas exceções, mas eram muito raras e obscuras. É particularmente difícil encontrar gravações de boa qualidade de música alternativa russa desse período. Devido ao acesso limitado a materiais de gravação, estas bandas tinham de improvisar e de ser muito criativas na forma como produziam as sua música, o que lhes conferia um som único e muito específico.

O filme mostra um excerto de um noticiário soviético onde denunciavam os hippies por roubo de fios de cabines telefónicas para usarem nas guitarras, mas não são apresentados mais detalhes. Esta parece ser uma queixa comum e oficial em relação aos hippies na URSS. Que se passava?
Isso era porque na União Soviética muitas pessoas construíam as suas próprias guitarras, enquanto a maioria dos instrumentos disponíveis na URSS eram fabricados na antiga Checoslováquia. Os miúdos hippies da era soviética no final dos anos de 1960 usavam as bobines eletromagnéticas dos telefones nas guitarras elétricas, algo que, quando colocado debaixo das cordas da guitarra, transformava uma guitarra acústica numa elétrica. Como os materiais de captação não estavam acessíveis através dos canais oficiais, os miúdos faziam os seus próprios destruindo cabines telefónicas.

Muitas das pessoas que participam no documentário relatam terem sido enviadas para hospitais psiquiátricos pelos seus pais ou por outras figuras de autoridade, como retaliação pelo seu envolvimento na cena hippie. Era algo comum?
Um dos hippies do filme conta ter sido enviado pela sua mãe para uma ala psiquiátrica pois a sua resposta entusiástica a uma versão contrabandeada do disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band dos Beatles fez com que ela pensasse que ele tinha enlouquecido. Este caso ilustra o poder das normas sociais na sociedade soviética da época, na qual, não apenas as autoridades, mas também grande parte da população, impunha uma cultura muito antiquada e conformista. Além do assédio policial, os hippies também se deparavam com o policiamento moral dos cidadãos comuns, que se referiram a estes de forma pejorativa como “os tipos de cabelo comprido”, os denunciavam à polícia ou os assediavam nas ruas.

É por isso que os hippies que eram vistos como líderes ou considerados demasiado visíveis para o gosto do Estado eram muitas vezes enviados para hospitais psiquiátricos ao invés de prisões. Um dos maiores receios dos hippies era o de serem enviados para os hospitais por doenças da pele ou infeções sexualmente transmissíveis, pois estes eram particularmente rígidos. Muitas vezes as autoridades identificavam ou simplesmente inventavam a presença de piolhos nos detidos, e usavam isso como argumento para os forçar a cortar os cabelos. Isto era muito difícil para muitos deles a nível psicológico, pois os cabelos longos eram considerados como sendo “a bandeira da liberdade”, um grande símbolo de não conformismo na URSS à época.

Contudo, um aspeto interessante na dinâmica com os hospitais psiquiátricos era o facto de muitos hippies e outros dissidentes se internarem voluntariamente em alas psiquiátricas de forma a evitarem o serviço militar obrigatório. Cruzavam-se muitas vezes com outros artistas, músicos e pessoas “boémias” em geral, todos eles procurando evitar o serviço militar. Os funcionários do hospital foram percebendo gradualmente que esta era uma estratégia dos objetores de consciência, e então era-lhes dado um diagnóstico e eram mandados embora. É importante notar que, embora muitos hippies tenham tido experiências horríveis e traumatizantes em alas psiquiátricas, estas também tiveram um aspeto positivo para muitos.

Em retrospetiva, como é que os hippies soviéticos que entrevistou refletiam sobre a sua experiência trinta ou quarenta anos depois? Estavam orgulhosos do que tinham feito? Tinham saudades?
Há mais de seis anos que trabalho neste projeto - organizámos há uns anos uma exposição num museu na Estónia e o filme foi exibido em cinemas do país durante vários meses. Foi uma importante contribuição para a revitalização de velhas amizades e ligações entre hippies, e de alguma forma trouxe o movimento de volta - ou pelo menos as memórias. Muitos dos hippies soviéticos que ainda são vivos esperam que o filme e a experiência que este documenta ajudem a inspirar a juventude dos dias de hoje - afinal, mesmo que o sistema sociopolítico dos países da antiga URSS tenham mudado muito desde os anos de 1970, a luta antimilitarista e o conformismo social permanecem iguais.

Sobre o entrevistado

Terje Toomistu is an Estonian documentary filmmaker, author, and anthropologist. Her work often draws from various cross-cultural processes, queer realities, and cultural memory. Her most recent film, Soviet Hippies, is currently showing at film festivals around the world, and will be shown on Friday, November 17th on ARTE.

Sobre o entrevistador

Loren Balhorn is a contributing editor at Jacobin and co-editor, together with Bhaskar Sunkara, of Jacobin: Die Anthologie (Suhrkamp, 2018).

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...