6 de setembro de 2017

O golpe de Kornilov

Há cem anos, por que a aliança entre o general Lavr Kornilov e Alexander Kerensky desmoronou?

Paul Le Blanc


Uma manifestação de trabalhadores da fábrica de Putilov em Petrogrado (atualmente São Petersburgo), na Rússia, durante a Revolução de Fevereiro. Wikimedia

Tradução / Houve uma época em que o general Lavr Kornilov e Alexander Kerensky foram considerados heróis da Rússia. Historiadores conservadores descrevem Kornilov como um honorável patriota e soldado profissional, enquanto historiadores liberais nos contam sobre Kerensky, advogado idealista e eloquente, que desejava transformar a Rússia em uma vibrante e democrática república. Após a abdicação do Czar Nicolau II, os dois juntaram forças – Kerensky como líder do Governo Provisório, Kornilov como comandante-em-chefe das forças armadas. Ambos desejavam guiar a nação para um futuro melhor.

Como historiadores de todas as vertentes recordam, os dois heróis romperam em agosto de 1917, preparando o terreno para a Revolução Bolchevique. Os historiadores discordam, no entanto, quanto aos acontecimentos que precipitaram a ruptura.

Segundo alguns, Kornilov planejava um golpe, o qual Kerensky frustrou ao mobilizar os grupos operários e socialistas. Eles argumentam que os inescrupulosos Bolcheviques se aproveitaram da confusão e tomaram o poder. Outros dizem que Kerensky inventara o golpe para remover Kornilov, pavimentando o caminho para a vitória não desejada dos Bolcheviques. Essa interpretação merece uma pergunta: por que Kerensky iria contra seu maior comandante militar e comprometer seu próprio poder?

A resposta está no fato de Kornilov ter planejado dois golpes em 1917: um com Keresnky contra os Bolcheviques e outro contra o próprio Governo Provisório. Seu derradeiro fracasso nos lembra que a magnitude da história da Revolução Russa não é feita por heróis, mas por forças sociais que criam o contexto no qual os indivíduos agem.

Do levante à repressão

A maioria dos leitores conhece as condições que produziram a Revolução Russa. Desde o fim do século XIX, a rígida monarquia semi-feudal estivera combinando-se com o capitalismo moderno e industrial. Esses estranhos parceiros geraram incríveis tensões entre a maioria trabalhadora – predominantemente camponeses, mas com uma dinâmica e crescente minoria de trabalhadores industriais – e a elite – os aristocratas hereditários e os capitalistas industriais. A Primeira Guerra Mundial extrapolou essa instabilidade em proporções explosivas.

Em fevereiro, respondendo aos apelos revolucionários de vários grupos socialistas, os trabalhadores se insurgiram em massa exigindo pão e paz. Mais profundamente, eles reivindicavam a total redistribuição da terra, um fim ao regime autocrático, direitos iguais e melhores condições de vida.

Os democráticos conselhos de trabalhadores e soldados, organizados após o levante, refletiam esses valores. Esses sovietes não só coordenavam a revolução, mas também supervisionavam a transição política e social que o levante exigia.

Enquanto isso, tipos mais “pragmáticos” – políticos liberais, conservadores e socialistas-moderados – formaram o Governo Provisório. Seus líderes exaltavam os operários, os camponeses e os soldados, elogiavam os sovietes, e despejavam todo tipo de retórica democrática e populista prometendo pão, paz e terra. Mas a paz só poderia vir com a honra, o pão teria que aguardar o fim da crise e a redistribuição de terras deveria respeitar os direitos dos proprietários.

Os sovietes, inicialmente inclinados a cooperar com um governo aparentemente bem-intencionado, desenvolveram limitações para guiá-lo aos seus objetos revolucionários originais. Keresnky, com suas credenciais socialistas, colocou-se como a ponte entre os sovietes e o Governo Provisório, tornando-se presidente.

Embora muitos acreditassem que Kerensky estivesse destinado a construir uma Rússia democrática, aqueles que o conheciam bem tinham suas dúvidas. “Em Keresnky tudo era ilógico, contraditório, em constante mudança, frequentemente caprichoso, imaginado ou fingido”, escreveu o líder Socialista-Revolucionário (SR) Victor Chernov, que serviu como Ministro da Agricultura. “Kerenky”, continuou, “era atormentado pela necessidade de acreditar em si mesmo e estava sempre ganhando ou perdendo essa crença”.

Enquanto ainda dizia representar os interesses dos sovietes no Govenro Provisório, Kerensky começou a se posicionar ao lado de outros políticos da ordem contra os conselhos, que comprometiam sua autoridade governamental.

Socialistas moderados, incluindo muitos Mencheviques e SR, insistiram que os sovietes deveriam apoiar o Governo Provisório para estabelecer uma democracia capitalista, o longo, porém necessário prelúdio para uma eventual transição socialista. Em contraste, os radicais Bolcheviques, liderados por Lênin, insistiam que as demandas das massas insurretas só poderiam ser asseguradas por meio de uma segunda revolução que derrubasse o Governo Provisório e desse “todo poder aos sovietes”. Isso, aliado ao alastramento da revolução para outros países, seria o estopim para a transformação socialista.

Mais e mais trabalhadores frustrados começaram a se unir aos Bolcheviques – até mesmo as alas esquerdas dos SR e dos Mencheviques eram convencidas pelos argumentos Bolcheviques. Leon Trotsky, um brilhante líder do ascenso revolucionário de 1905, tornou-se o mais famoso recruta dos Bolcheviques.

O ápice da raiva dos trabalhadores culminou numa marcha revolucionária em Julho. Militantes em Petrogrado, apoiados, mas não comandados pelos Bolcheviques, iniciaram o levante. A violência que se seguiu foi o pretexto para a repressão governamental. Como o militante da esquerda do SR, Isaac Steinberg, contou: “tropas de oficias, estudantes, cossacos saíram às ruas, revistaram transeuntes a procura de armas e evidências de ‘bolchevismo’, cometeram atrocidades”. O Governo Provisório colocou o partido Bolchevique na ilegalidade, invadiu e destruiu seus quartéis-generais e prendeu ou expulsou seus líderes e militantes mais destacados.

Kornilov e Kerensky

Durante as Jornadas de Julho, Kerensky nomeou Kornilov como comandante-em-chefe do exército russo. Ambos esperavam reagir à pressão dos insensatos trabalhadores, que estavam formando comitês de fábrica para controlar os locais de trabalho e organizando a “guarda vermelha”, grupos paramilitares para manter a ordem pública e proteger a revolução contra a violência reacionária. Tal radicalismo incomodava Kerensky, mas direitistas como o General Kornilov desprezavam tanto os radicais quanto os moderados. Políticos tradicionais – tanto liberais como conservadores – começaram a ver na ditadura militar o único caminho para estabilizar a nação.

Em suas memórias, Kerensky cita esta mensagem de Kornilov, na qual fica claro o desprezo a todos os socialistas, mesmo os moderados:

“Tenho certeza (...) que o Governo Provisório, formado por fracos e medrosos, será derrubado. Se por algum milagre permanecerem no poder, os líderes dos Bolcheviques e dos Sovietes sairão impunes pela conivência de homens como Chernov. É hora de colocar um ponto final nisso tudo. É hora de enforcar os espiões alemães liderados por Lênin, dissolver os Sovietes, destruí-los de tal forma que jamais consigam se reunir novamente!”

Kerensky revela: “concordei com isso, mas não tomei parte nos detalhes”. Ele acreditava que Kornilov permitiria a sua permanência como líder do Governo Provisório, mas um dos emissários do general revelou aos líderes liberais e conservadores na Duma que “tudo estava pronto nos quartéis-generais e no front para a remoção de Kerensly”.

Ou pelo menos era o que Kerensky dizia. Há debates entre historiadores se Kornilov de fato conspirava para substituir Kerensky com uma ditadura militar. Evidências sugerem uma comédia de erros, má comunicação e mal-entendidos. A maioria concorda, no entanto, que os dois homens planejavam eliminar os Bolcheviques e destruir os sovietes.

Golpe(s) derrotado(s)

Quase no último minuto, Kerensky concluiu que estava em perigo. Afinal, com os sovietes fora do caminho, por que o general se daria ao trabalho de suportar o presidente da esquerda moderada? Enquanto Kornilov marchava com suas tropas em direção a Petrogrado para “salvar a Rússia”, o presidente tentava desmoralizar o general e apelava à unidade das organizações operárias – incluindo os Bolcheviques, a quem garantiu total reconhecimento legal – para defender a revolução. Mais tarde, Kerensky escreveu:

“As primeiras notícias da aproximação de Kornilov tiveram o efeito de fósforo em barril de pólvora. Soldados, marinheiros e trabalhadores foram tomados por uma repentina suspeita paranoica. Viam a contrarrevolução em tudo. Em pânico ante a possibilidade de perder os direitos que haviam conquistado, liberaram seu ódio sobre todos os generais, proprietários de terra, banqueiros e outros grupos ‘burgueses’”.

A “suspeita paranoica” que Kerensky atribui às massas insurgentes foi, na verdade, o reconhecimento da sombria realidade que viviam. “As notícias da revolta de Kornilov eletrizaram a nação e especialmente a esquerda”, lembra-se o proeminente Menchevique Raphael Abramovich. “Os Sovietes e suas organizações afiliadas, ferroviários e algumas seções do exército, declararam-se prontas a resistir a Kornilov pela força se necessário”.

Os comitês de fábrica proclamaram que “conspiradores militares, liderados pelo traidor general Kornilov e apoiados pela cegueira e falta de visão política de algumas divisões, estão indo em direção ao coração da revolução – Petrogrado”. Outro apelo enfatizou que “uma terrível hora se iniciou” e conclamou os trabalhadores a “virem unidos em defesa da revolução e da liberdade”, pois “a revolução e o país precisam da sua força, seus sacrifícios, e, talvez, de suas vidas”. O historiador Alexander Rabinowitch escreve:

“Estimulados pelas notícias do ataque de Kornilov, todas as organizações políticas à esquerda dos Kadetes [partido dos liberais, pró-capitalista], todo tipo de organização de trabalhadores, comitês de marinheiros e soldados de todos os níveis, imediatamente se levantaram para combater Kornilov. Seria difícil encontrar, na história recente, um exemplo de ação política unificada e majoritariamente espontânea mais poderosa”.

Mas a resposta não foi inteiramente espontânea. N. N. Sukhanov, Menchevique e testemunha ocular dos acontecimentos, notou que os Bolcheviques tinham “a única organização grande e suficientemente coesa por uma disciplina elementar, ligada às mais baixas camadas democráticas da capital”. “As massas”, explicou, “na medida em que eram organizadas, eram organizadas pelos Bolcheviques”.

Apesar do partido de Lênin ter ganho apoio desde fevereiro, os insurgentes ainda se identificavam com uma variedade de correntes socialistas. Como Abramovitch explicou, “a ameaça de uma revolta contrarrevolucionária despertou e uniu toda a esquerda, incluindo os Bolcheviques, que ainda exerciam considerável influência nos Sovietes. Parecia impossível rejeitar suas ofertas de cooperação num momento tão perigoso”. Trotsky mais tarde recordou que “os Bolcheviques propunham a frente única aos Mencheviques e Socialistas Revolucionários e criaram com eles uma organização comum de luta”. Kerensky oferece sua própria perspectiva:

“A maioria dos líderes socialistas que estiveram na coalizão, temendo a possibilidade da vitória contrarrevolucionária e subsequentes represálias, voltaram-se aos Bolcheviques. Durante as primeiras poucas horas de histeria, em 27 de agosto, eles aclamaram os Bolcheviques e, a seu lado, prometeram ‘salvar a revolução’”.

Certamente, o sentimental Kerensky havia encarado acusações de histeria mais de uma vez. David Francis, embaixador dos EUA na Rússia, culpou o presidente russo pelo fiasco, pois Kerensky havia decidido não “executar como traidores Lênin e Trotsky” em julho e “falhou na conciliação com o general Kornilov, apoiando-se no Conselho de Delegados Operários e Soldados e distribuindo armas e munição para os trabalhadores de Petrogrado” em agosto.

Kerensky refletiu muitos anos depois: “Como poderia ter Lênin falhado em tomar vantagem disso?”

De fato. “Mesmo agora não devemos apoiar o governo Kerensky. Isso seria falta de escrúpulos”, Lênin enfatizou. “Lutaremos, estamos lutando contra Kornilov, assim como as tropas de Kerensly, mas não apoiamos Kerensky. Ao contrário, expomos sua fraqueza”. O líder Bolchevique explicou: “Agora é a hora da ação; a guerra contra Kornilov deve ser conduzida de uma maneira revolucionária, trazendo, estimulando e inflamando as massas (Kerensky tem medo das massas, tem medo do povo)”. Mobilizando-se contra as forças reacionárias sem titubear, os Bolcheviques conquistaram mais autoridade nos sovietes e maior apoio dos trabalhadores.

Trotsky, que ajudou a administrar esses esforços práticos, mais tarde lembrou:

“Os Bolcheviques estavam nas primeiras fileiras do combate; eles derrubaram as barreiras que os separavam dos trabalhadores Mencheviques e, especialmente, dos soldados Socialistas-Revolucionários, trazendo-os consigo”.

Perante uma determinada e mobilizada classe trabalhadora, e graças a agitadores revolucionários que contataram soldados sob o comando de Kornilov, a ofensiva militar da direita desintegrou-se antes que pudesse alcançar Petrogrado. “As centenas de agitadores – trabalhadores, soldados, membros dos sovietes – que infiltraram o campo de Kornilov [...] encontraram pouca resistência”, escreveu Abramovitch. As tropas de Kornilov, trabalhadores e camponeses de uniforme, responderam aos apelos dos agitadores Bolcheviques, SR e Mencheviques de esquerda, voltando-se contra os seus oficiais e apoiando os sovietes. O golpe colapsara, deixando Kornilov sem opção a não ser se render ao Governo Provisório.

A partir do fracassado golpe de Kornilov, os Bolcheviques conquistaram decisivas maiorias nos sovietes e asseguraram esmagador apoio entre a classe trabalhadora como um todo. Uma maioria do partido SR “rachou” à esquerda, assim como uma significante corrente Menchevique, alinhando-se a Lênin e Trotsky. Essa frente única preparou o terreno para o triunfo revolucionário de outubro.

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