1 de fevereiro de 2018

Brasil à beira do abismo

A perseguição de Lula representa um estreitamento da democracia brasileira com consequências de longo alcance.

Victor Marques e Maria Caramez Carlotto


Manifestantes durante uma greve geral em São Paulo, Brasil, em 28 de abril de 2017. Mídia NINJA / Flickr

Em 24 de janeiro de 2018, o ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado a doze anos de prisão por um tribunal de apelação que manteve a decisão do juiz Moro do ano passado. O julgamento foi extremamente controverso, as evidências consideradas frágeis e formalmente inadequadas por vários especialistas em direito brasileiro e observadores internacionais. Tem sido, na verdade, um processo judicial altamente incomum: politicamente carregado desde o início, com juízes atuando publicamente como cruzados morais contra a corrupção, e avançando de forma impressionantemente rápida para os padrões brasileiros, indicando que o caso foi acelerado por razões políticas.

Tudo isso reforça a impressão, forte em grandes setores da população brasileira, de que o objetivo do processo era impedir que Lula concorresse como candidato presidencial em outubro. Lula ainda lidera todas as pesquisas, com Jair Bolsonaro, o candidato autoritário à direita, chegando em um distante segundo lugar. Se Lula for, de fato, impedido de concorrer, é fácil ver isso como mais um capítulo de um golpe suave e prolongado, após o impeachment de Dilma Rousseff - apelidado de golpe parlamentar por seus críticos - em agosto de 2016.

Nesse caso, o objetivo era remover o Partido dos Trabalhadores (PT) do governo, aplicando uma agenda neoliberal radicalizada que o próprio PT não estava disposta a seguir - pelo menos não no ritmo e na intensidade exigidos pelo capital. O impeachment de Dilma Rousseff, inconstitucional e divisivo como foi, talvez tenha dado um golpe fatal na relativamente jovem democracia do Brasil. Impedir Lula de se candidatar e mandá-lo para a prisão, de forma tão frágil e contestada, é ainda mais grave. Isso agravaria a crise institucional e colocaria em risco o arranjo político que prevaleceu nas últimas três décadas.

Lula como símbolo

Lula, o homem, é hoje a síntese emblemática da crise política da República Brasileira. Lula já era, de fato, algo como um elemento organizador do sistema político - uma figura constante e polarizadora durante todas as eleições presidenciais desde o fim da ditadura militar, incluindo aquelas em que ele próprio não era candidato.

Como seu político mais proeminente, Lula tornou-se um símbolo para todo o período da chamada “Nova República” e o arranjo político estabelecido após a constituição de 1988. Agora, sua exclusão compulsória da eleição de 2018 marca o fim desse período de democracia liberal representativa no Brasil.

Mas Lula é um símbolo para além disso. Como ex-líder sindical militante e fundador do Partido dos Trabalhadores, Lula também representa a entrada da classe trabalhadora na esfera política como sujeito coletivo autônomo. Em torno do núcleo de uma liderança de trabalhadores industriais, uma teia complexa de demandas sociais por direitos e reconhecimento reuniu-se em um partido de massa da classe trabalhadora, com o Lula, desde o início, desempenhando o papel de catalisador e unificador.

Nesse sentido, sua condenação é inerentemente política: uma tentativa de punir retrospectivamente essa audácia impertinente da classe trabalhadora, uma reafirmação do credo oligárquico de que a política eleitoral é de domínio exclusivo das classes altas. O que realmente está em jogo no Brasil, portanto, não é apenas o destino do período da Nova República, mas o reconhecimento das classes trabalhadoras como um ator político legítimo. O que se condena com Lula é a própria ideia de democracia de massa.

Lula não é radical - como ele enfatiza constantemente. No Brasil, nunca houve uma clara ruptura com o neoliberalismo, embora houvesse um hesitante e gradual afastamento da ortodoxia do Consenso de Washington. No governo, o PT adotou a “conciliação de classe” no sentido mais estrito: o antagonismo social foi reduzido ao se colocar a classe trabalhadora no governo e permitir que movimentos sociais e sindicatos fossem representados em diversos ministérios. Desde o final da década de 1990, o partido caminhava lenta mas firmemente para uma variante brasileira da política da Terceira Via, antes de ser atingido por uma série de crises - incluindo os escândalos de corrupção do primeiro mandato de Lula, a crise financeira global e uma crise de representação de todo o sistema político inflamada pelas manifestações de massa de junho de 2013.

Mas o PT era, como hoje, o maior partido do Brasil identificado com a esquerda, com uma base de massa militante e fortes ligações com sindicatos e movimentos sociais. E no poder, de fato, aliviou a pobreza, quase erradicando a fome e perseguindo uma política de pleno emprego que empurrou os salários para cima. É por isso que, mesmo agora, depois de anos incansavelmente atacado em todos os principais meios de comunicação, Lula continua sendo, de longe, o político mais popular do país e o PT é o número um em preferência eleitoral. O PT, partido construído pela mobilização da classe trabalhadora, venceu todas as últimas quatro eleições presidenciais e um resultado sem precedentes para a esquerda brasileira. A fim de manter o PT longe da presidência, a direita teve que recorrer a outros meios.

A crise do capitalismo democrático

Intelectuais como Nancy Fraser, Wendy Brown, Slavoj Zizek e Wolfgang Streeck destacaram o que parece ser uma tendência global de separar o capitalismo e a democracia, no que pode ser um divórcio permanente. A crise econômica internacional não resolvida, iniciada há uma década, produziu uma radicalização autoritária do neoliberalismo, manifestando a incompatibilidade entre a participação das massas na política e as exigências de uma gestão “eficiente” da economia, que implica políticas de austeridade e uma onda adicional. de privatizações e redução de direitos sociais.

As elites não estão mais dispostas a se comprometer: como resultado, mesmo formas enfraquecidas de cidadania e soberania popular devem ser sacrificadas em nome de “reformas estruturais”. E se o povo não conseguir aceitar as reformas - como a reforma sindical, recentemente votada pelo congresso brasileiro, ou a reforma radical da previdência social marcada para fevereiro - muito pior para o povo. O golpe parlamentar contra Dilma é a expressão brasileira de uma tendência global. O golpe apoiado pelo parlamento corrupto e reacionário do Brasil foi na verdade uma aquisição corporativa hostil: em um estilo de “capitalismo de desastre”, um frenesi anticorrupção foi explorado para perseguir uma agenda política profundamente impopular, que nunca seria endossada pelas pesquisas.

Não há plano B?

No dia seguinte à condenação de Lula, o Partido dos Trabalhadores se reuniu em São Paulo para lançar Lula como candidato às próximas eleições. As palavras da presidente do PT, senadora Gleise Hoffmann, não poderiam ser mais claras: “Quero reafirmar que não temos o Plano B. Lula é nosso único candidato em 2018.” O senador Lindbergh Farias adotou o mesmo tom: “Se quiserem prender Lula terá que prender milhões de brasileiros.” O discurso oficial dentro do partido agora é que a constituição foi rasgada e que o pacto democrático foi quebrado. Na marcha de mais de cinquenta mil pessoas que tomaram as ruas de São Paulo em defesa de Lula na noite do dia 24, a maior faixa dizia: “Não os deixem condenar. Não os deixem prender (Lula).”

Lula e o PT não representam uma ala revolucionária da esquerda brasileira. Pelo contrário, a esquerda radical muitas vezes vocaliza a crítica de que o PT foi muito brando com a elite brasileira durante seus treze anos no governo.

A ironia é que o PT, como principal organização de esquerda, adotou até agora uma postura extremamente conservadora: são eles que tentam desesperadamente salvar o pacto social da Constituição de 1988, para preservar o arranjo político da Nova República, efetivamente implorando por um retorno à mesa de negociações. É a classe proprietária, por outro lado, que se comportou como revolucionários intransigentes, recusando qualquer acordo, afirmando que não há nenhum compromisso possível, depondo um governo, perseguindo o líder mais popular da esquerda e lançando um ataque total à classe trabalhadores e aos pobres rurais.

Mas talvez agora estejamos nos aproximando de um ponto de ruptura. Para um número crescente de brasileiros - tanto da esquerda quanto da direita - o sistema político carece de legitimidade. Quanto mais o campo institucional diminuir, mais transformadora será a solução para a crise política. Quando os caminhos institucionais da democracia liberal são fechados, a fúria popular será forçada a procurar outros caminhos para se expressar - com conseqüências imprevisíveis.

Colaboradores

Victor Marques é professor de filosofia e militante na Universidade Federal do ABC, no Brasil.

Maria Caramez Carlotto é socióloga, militante, e professora de ciências sociais na Universidade Federal do ABC, no Brasil.

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